O canoeiro do João de Tiba

A balsa que atravessa o rio João de Tiba é como o portão da rua, o balcão do bar, o banco de uma praça. É possível ficar apenas olhando o movimento, mas se estiver disponível sempre aparece alguém para conversar. Conheci ótimas pessoas neste leva e traz fluvial, recentemente um homem magro de chapéu de palha fumando cachimbo se apresentou como mineiro poeta e novo morador da vila. A semana passada ao encontrar o poeta pescando na praia ganhei de presente um livrinho de cordel que ele escreveu com a historia “O canoeiro do João de Tiba” . E não é que o poeta escreve ?

Ali no cais de Sta Cruz Cabrália havia duas opções de travessia para os povoados de Sto André, Sto Antônio e Guaiu e há os que se atreviam a seguir mais adiante chegando a Belmonte. Ou se seguia pela bareeira, ruidosa na batida do motor ou se assentava sereno qualquer passageiro na retaguarda do canoeiro que seguia de pé feito um guia de travessia e de existência. Cobrava uma moeda que já tinha algum valor um pouco antes do cruzeiro virar real. Num desses dias de sol a pino, o poeta que dispensava a balsa e nem se dava bem com o ruído da bareeira sentou-se pela primeira vez na retaguarda do canoeiro e ambos desfilaram primeiramente o silêncio de cada um. Não era de fato um silêncio pesado e sim aquele silêncio de respeito pela calmaria das águas e o andar trôpego e sem sentido dos caranguejos do mangue.

– O Senhor faz esta travessia há quanto tempo? – indagou o poeta, observando a alva barba despontando até o peito castigado pelo sol.

– Primeiro gastei dois anos de minha vida trabalhando a tora para que virasse canoa e aqui são vinte e seis anos corridos em cima da tora que eu mesmo fiz canoa.  – de súbito, respondeu, sentindo-se assim invadido em seu silêncio, mas assentiu de bom grado percebendo naquele passageiro algo especial no contemplar de olhos séquitos e reverentes diante daquele verdadeiro espetáculo que para ele, canoeiro era sempre desafiador.

– E dá para sobreviver bem com uma moeda aqui e outra ali nesse vai e vem?

– Moro naquela mata acolá, onde ninguém me acha, os pássaros que tenho nem preciso tratá-los. O dinheiro que ganho aqui é mais para a palha e o fumo que acendo a noitinha pras muriçocas

– E água e comida? – rearguiu o poeta.

– Água doce e limpa para beber e banhar é abundante aqui e comida a mata me dá tudo o que preciso.  – desta feita ele respondeu com mais tenacidade sentindo-se invadido na decisão e opção de vida.

O poeta pressentiu o incômodo que começava a causar no canoeiro e delimitou-se apenas a comentar: Deve ser maravilhoso ter como rotina o ir e vir dessas travessias e quantas histórias já deve ter ouvido…

– Melhor são as histórias que se ouve do que as histórias que se conta.

Não se contentando, o poeta num tom desafiador afirmou:

– O senhor não tem histórias para contar?

_ Tenho muitas e tantas histórias, mas as de mim mesmo, prefiro deixar embaixo dessas águas, empurradas pelo meu remo; mas as histórias dos mistérios dessas águas e desses mangues gostaria de ter ouvidos para escutá-las.  – revidou assim o canoeiro em tom mais desafiador ainda a indagação daquele poeta curioso.

O poeta se arrepiou dos pés a cabeça e disse para si mesmo: trata-se também de um poeta. Esse velho homem de barba alva, castigado pelo sol, ouve também as mensagens do mistério natural e sobrenatural desses lugares paradisíacos e decifra tão bem seus mistérios. Já não se sentia tão só ali, o escritor, e permitiu um largo sorriso ao canoeiro e aumentou o tom pressentindo a resposta.

– Canoeiro, o senhor consegue tirar palavras e músicas dessas águas?

– As duas coisas de uma só vez ou uma de cada vez; mas o que mais me intriga é saber que aqui há um espelho mágico nessas águas. Todos aqui se revelam.

Uma pessoa chega aqui pensando ser uma coisa e vai fazendo miração nessas águas e acaba descobrindo que não é nada daquilo que achava ser. Vi pessoas chegarem aqui com muito ouro e prata e terminarem descobrindo muita pobreza em si. Vi outros que penavam na idéia de se enxergarem miseráveis e depois da miração se entenderam riquíssimos. As mulheres procuram amores verdadeiros e fortes e há homens que passam a tocar as fêmeas com as costas da mão. Há meninos que ficam velhos e velhos que ficam meninos. Um sonho que era por demais colorido se enegrece e outro que rebrilhava prateado se torna de um dourado solar. A natureza quando pega forte na veia faz muita coisa virar do avesso. Sou apenas um remador que observa e se sigo sempre em frente, indo e voltando é porque aprendi a fazer de um pouco, um tanto bom de se viver.

Naquele momento o poeta se reportava a tudo o que foi escrito e reescrito por toda humanidade. Lembrava-se de pensadores, profetas, poetas e mergulhava fundo em sim mesmo e chorou copiosamente sem deixar perceber, o pescador entretido pela serenidade do mangue, que já se avizinhava na margem. Descortinava-se para ele a verdade absoluta da vida. Outros tantos pela história das navegações pequenas ou grandes puderam confirmar o que para ele era nítido: Uma canoa e um remo podem ser de madeira ou de ouro. Naquele momento ele estava assentado na retaguarda de uma canoa dourada com remos de ouro. Ali no sul da Bahia, na travessia do João de Tiba, na Santa Cruz Cabrália, na Costa do Descobrimento.

O livrinho de Cássio Poetta está à venda  na lojinha da Monica, Cores e Sabores, no restaurante Gaivota ou através do próprio poeta que está sempre pela vila.

 

 

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