
Cada vez que vejo as imagens dos protestos nos Estados Unidos pela morte brutal de George Floyd lembro de um outro George, o Goodman, que conheci no início dos anos 80 quando morei em NYC. Fomos apresentados por amigos, ele era jornalista do New York Times e conhecera o Rio de Janeiro a convite do Alfredo Machado, da Editora Record, num grupo de formadores de opinião que fora ver o carnaval. Ficou alucinado com a cidade, amou tanto a Portela que em sua casa a bandeira da escola de samba de Oswaldo Cruz tinha destaque cobrindo o encosto de uma cadeira de espaldar alta na sala. Ficamos amigos, vamos dizer que um pouco mais do que amigos. Ele um negro com mais de 1m80 de altura, com quem eu andava por todos os cantos de Manhattan sem qualquer problema de racismo. Entrávamos e saíamos de restaurante, bares, teatros, livrarias, vernissages, sozinhos ou com seus amigos incríveis coreógrafos, bailarinos, pintores, escritores e também advogados, engenheiro, médicos…Todos negros. Talvez por eu ser latina, falar inglês com sotaque, não tinham restrições…
George morava bem em frente ao Central Park na entrada do Harlem, um apartamento com um visual incrível, onde ele preparava o jantar e eu lavava a louça… Certa vez me levou para conhecer a redação do New York Times e contou por que escrevia no caderno de real state. Naqueles tempos os jornais no Brasil só tinham cadernos com anúncios de vendas e aluguel de imóveis, enquanto o New York Times tinha uma vez por semana um caderno maravilhoso, com análises econômicas, culturais, antropológicas, esportivas, sociais, das regiões que compõe o estado de Nova York. “Para escrever sobre real state tenho que saber um pouco de tudo, o que é uma grande oportunidade para um negro, pois os primeiros convites que recebi eram para escrever sobre música, artes e esportes. ”
Sempre tenho que contar um fato interessante que aconteceu quando, no auge do nosso namorico, eu ia ao Rio passar 15 dias e perguntei se não queria ir comigo. Ele contrapôs o convite com uma pergunta: “o que sua família e amigos vão dizer ao verem você chegar com um negro? ” Respondi que a princípio alguém diria “a Léa enlouqueceu”. Mas quando comentassem que era americano amenizaria a conversa com um “até que é simpático” e quando soubessem que era jornalista do The New York Times diriam que era louro de olhos azuis. Ele riu muito e sempre contava para os amigos esse diálogo…George tinha total consciência do que significava um negro e uma branca juntos no Brasil.
Pois bem, a última vez que nos encontramos eu já tinha voltado a morar no Brasil, fui a passeio à NYC, ele me convidou para jantar e contou que estava se preparando para dar uma grande virada na vida. Foi contundente : “sei que você vai entender”. Acontece que a primeira vez que fui à sua casa, mais do que a bandeira da Portela, me chamou a atenção um quadro com a foto de um menino negro segurando a mão de um homem branco que me apresentou como sendo seu avô. Contou que o avô fora professor em Harvard e se casara com uma negra gerando um enorme problema familiar. E nada mais disse. E a grande novidade que queria compartilhar era que decidira pedir demissão do jornal e morar um tempo com a mãe na Califórnia para ouvir a história das raízes de sua família “enquanto minha mãe está lucida”… E assim o fez e sabia que se eu estivesse no seu lugar faria exatamente o mesmo.
Nos perdemos na vida e, há alguns anos, depois de muito procurar na internet, encontrei George que respondeu o meu alô com um email comovente … Memórias dos anos 80 reavivadas, sempre ficam só as boas histórias… Contou que casara, tinha filhos e netos, era professor, queria muito que eu fosse visitar sua casa e conhecer a família… Tinha escrito um livro, ia enviar mas nunca chegou… Também nos conectamos no facebook, às vezes comentava as minhas fotos e de uns tempos pra cá sumiu… Já vasculhei diversas vezes e não o achei… Hoje enviei um email. Não sei por onde anda George Goodman em tempos de covid 19…. Mas sei que cada vez que vejo, escuto ou leio sobre racismo a sua imagem está junto…