Ressaca

Eu sou uma profissional de comunicação que há muitos anos trabalha com eventos. Eventos enormes, em áreas fechadas para 200 mil pessoas, em áreas abertas para milhares delas e, entre os ensinamentos que recebi com grandes produtores como Dody Sirena, Cicão Chies e Roberto Medina, o mais simples é o que acontece no palco. O artista, os técnicos de som e luz, os cenógrafos, sabem o que fazer. A grande questão é o que rola no entorno. Como chegar e sair do local, a logística dos fornecedores, a segurança do público e como o evento se incorpora na localidade. Talvez algumas dezenas de histórias para contar na relação com diversas comunidades, como ao lado da Cidade do Rock na Barra da Tijuca, nas Piscinas do Sultão em Jerusalém ou no Parque Bela Vista em Lisboa.  O respeito aos locais dos eventos e aos seus moradores sempre foi fator fundamental nos planejamentos e nos levaram a muitas horas de reunião.

Isto tudo para dizer o quanto um lado meu se entristeceu em integrar um grande movimento criado no povoado aonde vivo para que não acontecessem 6 dias de festas para até 600 pessoas/dia no final do ano.  Não entro no mérito do evento, apropriado ou não para a localidade cuja mídia sempre promoveu como um local de tranquilidade e cujas 3 experiências de réveillons foram desastrosas. Mas me refiro ao momento em que vivemos, tudo acontecendo numa comunidade com pouco mais de 800 habitantes que, naturalmente, já tem um grande aumento na sua população no final do ano e que está passando pela pandemia com apenas 7 casos registrados pela Secretaria de Saúde de Cabrália. E ainda temos um outro ponto relevante: estamos numa APA – Área de Proteção Ambiental – e neste período acontece desovas de tartarugas.

Inapropriada a proposta, foi o mínimo que pensei…  Mas a insistência dos produtores permanecia apesar das conversas que tentamos manter e aí não nos coube outro caminho a não ser sair em defesa de vidas, pois essas importam… Tanto importam que no início da pandemia, quando tudo fechou, levantamos recursos e distribuímos durante 6 meses cestas básicas para os trabalhadores da praia que ficaram desassistidos e também colaboramos com a doação de medicamentos básicos para o posto de saúde.  A fragilidade da saúde pública em todo o país é latente, aqui não foge à regra, por mais boa vontade que tenha a administração. Por ser um município com menos de 30 mil habitantes, Santa Cruz Cabrália, onde se encontra o bairro de Santo André, tem como referência para saúde a vizinha Porto Seguro, 24kms distante, com grande ocupação nos 20 leitos de UTI, sendo 10 particulares. A grande maioria dos trabalhadores desta festa seria de moradores e quando tudo terminar como ficaríamos?  Infectados?

Resisti a participar do movimento pois achava um absurdo que os produtores insistissem com o assunto. Varias reuniões já tinham acontecido e fiquei fora. Mas chegou num ponto que não deu mais. Já existia um grupo formado e me engajei. Uma união de moradores, turistas e empresários. Começamos a falar com amigos, disparar apelos nas redes sociais, abaixo assinado virtual e físico onde recolhemos mais de 2 mil assinaturas, nos tornamos assunto na mídia nacional, entramos com uma ação no Ministério Público e tudo culminou no horário nobre da TV Globo, com o Jornal Nacional. Seguindo a teoria dos 6 graus*, nosso clamor chegou ao Governador Rui Costa que veio à público dizer que “festa não”, através de um decreto estadual. Uma posição política exemplar.  Hoje vivemos o alívio.   Tenho o sentimento de ter ajudado a estancar o vírus. Sinto uma ressaca como no final dos grandes eventos, quando só resta desmontar o palco, juntar os recortes da mídia e fechar os relatórios… Sei que turistas mais conscientes virão, utilizando máscaras, desfrutando de  nossa enorme extensão de praia, ocupando hotéis, pousadas e restaurantes, cumprindo os protocolos determinados pelo Governo e acreditamos que com isso a Vila de Santo André volte a ter o título de quase todas as reportagens publicadas a seu respeito: um local de tranquilidade, paz e contemplação.

*A Teoria dos Seis Graus de Separação originou-se a partir de um estudo científico desenvolvido pelo psicólogo Stanley Milgram, que criou a teoria de que no mundo são necessários no máximo seis laços de amizade para que duas pessoas quaisquer estejam ligadas.

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3 Respostas para “Ressaca

  1. Aêêê, Léa!
    Parabéns,

  2. Que bom que tudo foi resolvido. A minha torcida foi grande. Parabéns aos moradores de Santo André que unidos viram que têm a força.
    Um dia ainda conhecerei esse lugar mágico.

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