Loucura

A campainha tocou insistentemente. Pensei num corte rápido de luz e com isso o interfone tinha disparado. Mas além da campainha vinham gritos da rua e não demorou chegar a informação de que Carmen, a louca de plantão, estava no portão pedindo dinheiro.  Toda cidade tem seus loucos e bêbados, numa vila pequena são mais próximos. Quando criança lembro de um misto de bêbado e louco que andava por nosso bairro. Papai o tratava muito bem e uma noite ele bateu palmas no jardim pedindo um paletó para ir ao cinema. Papai tirou do armário um paletó usado, mas ainda em ótimo estado, entregou ao homem que saiu feliz pela rua. Não dormi aquela noite imaginando-o no cinema. Será que ele ia entender o filme ?

Aqui em Santo André temos bêbados e loucos divertidos. Na verdade somos todos as vezes bêbados e as vezes loucos. Mas entre os declarados, um diz que conversa com os que já partiram, sabe tudo o que acontece no além. Outro que faleceu recentemente e manda noticia, quando vivo dizia que ia mudar de vila para fugir da morte.  Temos também um Forrest Gump que anda descalço pelas ruas de terra, apenas vestindo um calção sem camisa. Não fala, apenas caminha sem parar. Dizem que volta prá casa, beija a mãe e continua andando.

Mas voltando a Carmen a campainha insistia e resolvi encarar. Acredito que louco a gente trata da mesma maneira como se apresenta. Se acha que é Napoleão me coloco como parte do seu exército. Por isso fui caminhando os 30 metros de casa até o portão gritando no mesmo tom que ela. Quando cheguei perto vi sua cabeça surgindo sob o portão, um resquício de turbante branco prendendo seu cabelo, enfeitado com flores de hibiscos e folhas. O olhar sem sintonia, gritava pedindo dinheiro.

Todos que moram na vila sabem que quando Carmen entra em crise ninguém segura. No fim de semana quebrou o vidro da ambulância. Filhos, irmãos e sobrinhos passaram a madrugada atrás dela. Mas nem sempre foi assim. Cozinheira de mão cheia, baiana bonita recebia os turistas com muito charme. Fazia a melhor moqueca, vendia acarajé na praia e em seu espaço fazia festas  onde gringos e nativos dançavam forró até o dia clarear. Ainda a conheci assim, mas em algum momento foi se desestruturando. Uns dizem que  é castigo por ter feito muita macumba, ficou tomada por maus espíritos, outros acreditam que simplesmente pirou. Mas o que se vê hoje é aquela mãe e avó em total degradação. Esteve internada algumas vezes, quando volta está gorda, com o olhar perdido e calma. Mas alguma coisa acontece, não sei se deixa de tomar os psicotrópicos e de repente desanda.

Quanto mais Carmen gritava mais eu aumentava a voz. Não havia um diálogo apenas gritos sem nexo. Tudo isso não durou mais que 2 minutos, mas parecia uma eternidade. Em um momento achei que era tempo de parar aquela maluquice, ameacei chamar a polícia, virei às costas e voltei. Carmen ainda soltou meia dúzia de palavrões e foi embora. Entrei em casa com sentimentos confusos. Muita pena e muita raiva. Pena da vida desta mulher. Podia ser eu, minha irmã, qualquer amiga. Ninguém está livre de pirar. Raiva da minha incompetência frente à loucura… Não tenho outro caminho a não ser andar na praia, pensar na vida e pedir à Deus que mantenha a minha sanidade mental.

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3 Respostas para “Loucura

  1. é verdade tem coisas que saem do nosso controle,achamos que sabemos lidar com tôdas as nossas experiências de vida, mas ai surge coisas que nos tiram o chão.Só nos resta orar por pessoas assim,que um dia teve paz.,e depois pra nós claro.

  2. Um abraço com muito carinho pra você, amiga querida.
    Há tempos em que passam ondas que arrebatam algumas pessoas e essa mesma onda passou por aqui e me massacrou também, mas são ondas e se diluem com o mesmo tempo que as trouxe.
    Inexplicavelmente, isso é vida real…

  3. Nossa Lea,pude reviver todas as emoçoes de um encontro com a Carmem nesse estado e tb me fez pensar que nao estou livre de um desatino como esse,vc sabe que as vezes e chegado bem perto disso.
    Saudedes! De nosso paraiso onde td acontece.
    Bjsssssssssssss.
    E parabens!So hj li td sobre sua historia que virou filme e o premio.Vc merece!

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