Quando fui busca-la no aeroporto não percebi qualquer desajuste. Estava feliz com férias na praia, festas de fim de ano e percorremos os 24kms até Vila de Santo André comentando o corrido nos últimos meses em que não nos vimos. Não foram necessários muitos dias para notar um estranhamento confirmado com um comentário da Lelê, a boa alma que me ajuda em casa e a conhece há muito tempo: “ela está repetindo sempre a mesma coisa”. Era verdade. Três ou quatro assuntos ficavam em cena como se só isso tivesse acontecido ao longo do ano. Repetiam como um disco velho que vai e volta nas mesmas canções. Fiquei atenta com as reações, comecei a instigar a memória, prestar atenção na hora que saia e voltava da praia, e faltando uma semana para o Ano Novo ela se ofereceu para fazer uma torta alemã como sobremesa para a ceia. É uma das suas especialidades! Comprei os ingredientes, ela avisou que a torta deveria ser feita um dia antes e foi a partir daí que vi o quanto a situação estava crítica. Durante 5 dias ela acordava e dizia: vou fazer a torta. E nós tínhamos que avisar que ainda não era a véspera do réveillon. Foi assim que descobri que ela estava com Alzheimer.
Lembrei deste fato que muito me dói enquanto conversava com um amigo sobre a importância de adquirir e passar o conhecimento, ficar up to date com o que rola no mundo e me surpreendi com o seu comentário: para que tudo isso se o futuro é incerto? O amigo tem vasta formação acadêmica, trabalhou com processamento de dados, é realista, tem o pé no chão. Acabou de aposentar e procura um lugar tranquilo para viver com a mulher. Mais pescarias, caminhadas, leitura na rede, viajar no mundo enquanto está lucido… Teme o mal alemão.
Passei o dia com esse assunto viajando comigo na travessia da balsa, em reunião na prefeitura, assistindo novela, costurando bonecas, meditando, nas entrelinhas do livro “Eu.Com”, na prece antes de dormir… Pensei muito e conclui que se acaso venha perder algum pedaço da memória que sejam as aulas de álgebra e matemática. Física e química também. Ficarei feliz com a aritmética, as quatro operações e as taboadas. Também posso esquecer os afluentes das margens direita e esquerda do Amazonas (Javari, Jutaí, Juruá, Madeira, Purus…), mas quero preservar as declinações em latim. Sei que não servem pra nada mas tem um cheiro de juventude. Também posso esquecer receitas culinárias, afinal sou tão fraquinha na cozinha, mas não me tire o paladar nem os cheiros e perfumes… Ah! manter a memória do cheiro de terra molhada, de café no coador, de sabonete Phebo, das árvores de Almescla e da Murta, da maresia, de roupa limpa, de Patchouli e feijão temperando. Não preciso mais entender de moda, afinal acho que nunca entendi, mas dispenso saber o que combina ou deixa de combinar, pois as roupas servirão só para proteger o corpo. Posso terceirizar a catalogação dos livros, não preciso mais arrumar em ordem alfabética do autor, mas não quero esquecer o poema “Ouvir Estrelas” de Olavo Bilac, que até meus últimos dias eu possa dizê-lo assim como as orações que aprendi e as que inventei…
Dispenso guardar o nome das árvores, das flores e também os horários das marés e as luas. Basta que as árvores deem sombra, frutos e segurem a minha rede, que as flores tragam cor ao jardim. O mar irei vê-lo a qualquer hora e a lua que me surpreenda quando surgir no céu de qualquer tamanho ou formato. Posso também esquecer as marcas e os tipos dos carros. Para que lembrar do Simca Chambord, da Vemaguete e da Romiseta ? Alguém vai me conduzir ou então vou a pé, de bike, ou melhor, não saio do lugar… A minha casa me basta com meus pensamentos, mesmo que falhos ou turvos… E se nada mais puder lembrar, que fiquem apenas as memórias dos que me amaram e os que eu amei, os amigos, os mestres e todos os que riram comigo….
Em tempo: a amiga, referência do primeiro parágrafo, neste pouco mais de 1 ano fez todos os exames e foi diagnosticada com Alzheimer. Descobriu-se ainda cedo, está em tratamento, mas bem comprometida. Sai sozinha, assiste muitos filmes na TV mas no dia seguinte não lembra o que viu nem o que almoçou… Deixou de frequentar cursos, encontrar amigos e ir ao shopping. Se deprimiu. Neste processo também não recorda que telefono muitas vezes por semana, escuto as mesmas histórias e sempre faço ares de surpresa. Não critico, nem brigo nem insisto que já ouvi…. Só fico muito triste.