Eu não sei qual a música tocava quando nasci, mas cresci com uma profusão de sons, estilos e tendências diversas. Tenho o sentimento que a minha infância acabou quando vi Maysa cantando na TV. Por conta de um acidente doméstico naquela noite fiquei acordada até mais tarde e para me distrair papai deixou a TV ligada. Num estúdio enfumaçado, com pilastras greco romanas, Maysa caminhava em direção à câmera segurando uma taça que continha algum líquido, o cabelo caindo no rosto, um vestido drapeado no ombro e cantava “Meu mundo caiu”. Naquele momento o meu mundo também caiu. Constatei que havia uma outra essência de arte que nem meus pais, irmãos, as freiras do colégio, os amigos da rua haviam me revelado. Abria-se um novo caminho em minha vida através da música. Não a música de fossa, o samba-canção pré-bossa nova que Maysa compunha e interpretava, mas a música como algo vital.
Não tive formação musical acadêmica. Quis aprender piano, acordeão, mas estava fora da “cultura da família” e do orçamento. Papai tinha uma visão interessante sobre os outros assuntos que estavam fora do padrão básico de educação e saúde. Jamais falamos sobre isso, mas com o passar do tempo concluí que ele acreditava que sua responsabilidade era oferecer aos 5 filhos, sem privilégios, tudo o que podia. Associou-se a um clube perto de casa onde todos podiam usufruir dos esportes. Comprou TV, vitrola, discos, livros e fez uma assinatura da revista Seleções. Informação para todos. Da coleção Tesouro da Juventude à obra de Monteiro Lobato, além de dicionários e livros diversos que se enfileiravam na estante do corredor. Lia-se com constância, por hábito, não por obrigação.
Musicalmente o seu gosto era eclético. Nos domingos e feriados, antes do almoço, ele colocava para rodar na vitrola LPs e discos de 98 rotações que variavam de Noel Rosa cantando com Aracy de Almeida à ópera Carmen. Não sei o que regia a seleção musical que ainda tinha Inezita Barroso, Glenn Miller, Tonico e Tinoco, Waldir Calmon feito para dançar, “Continental” (orquestrado com “standards” americanos), Agostinho dos Santos e por aí seguia… nenhum disco da Maysa, era um estilo novo demais. E foi esta falta de preconceito que estruturou minha vida muito mais do que papai podia imaginar. Qualquer som era bem-vindo, só havia o bom ou o ruim, sem julgamento, apenas sentimento….
O rádio da Rosalina foi outro elemento importante. Ela era a empregada da família, viera do Paraná. Pequena e magra, tinha como relíquia um pequeno rádio que a acompanhava por toda a casa. Era uma caixa de madeira laqueada em tom marfim com uma telinha de tecido na frente por onde saía o som, próximo ao dial de plástico com os números das estações em AM. Na cozinha o rádio tinha lugar de destaque, quase um oratório sob a pia, de onde ela ouvia programas de auditório, novelas e muita música caipira. Não sei quantas vezes fiquei sentada num banquinho vendo a Rosalina fazer o melhor feijão com arroz e bife acebolado que comi na minha vida, ouvindo rádio…
Por isso aos 16 anos quando na casa da Ângela (naquele tempo era “da Cunha Porto Carreiro de Miranda” e depois casada com Gonzaguinha passou a assinar Ângela Gonzaga) vi uma roda de samba com uma porção de jovens cantando e compondo em pleno período de repressão política, a música pela segunda vez mudou a minha vida… E assim o jornalismo e a música caminharam paralelo ao longo de mais de 40 anos.
Percebo e recebo qualquer estilo musical sem preconceito. Posso dizer não gosto, não quero ouvir em casa, mas respeito a forma de expressão sem gerar qualquer sentimento de raiva, revolta, ódio ou inveja…. Apenas um virar de página, mudar de canal. Esta reflexão vem por conta dos muitos comentários que li nos últimos dias com relação a morte do cantor e compositor Cristiano Araujo. Como dizia Tom Jobim, “no Brasil, sucesso é ofensa pessoal”, ainda mais quando vem de alguém que parecia ser desconhecido para um número enorme de formadores de opinião. Não ouvi “Bará bará bará berê berê berê” a composição que lançou o rapaz de Goiás, mas também não causaria qualquer dano à minha integridade intelectual. Porque como se dizia quando eu era criança, “entrou por um ouvido e saiu pelo outro”. Vale sim pensar que “O Brasil não conhece o Brasil”, como tão bem escreveu Aldir Blanc.