Acabou a luz. Estava almoçando, passava das 13hs quando um sinal, quase um apito, soou na caixa que distribui energia elétrica de casa avisando. A geladeira que faz um barulho quase imperceptível se calou e o silencio dos elétricos eletrônicos se fez. Isto tem acontecido com certa frequência. Vida rural, repito sempre. Fiz o procedimento padrão destes momentos: troquei o telefone sem fio por um convencional. Telefonei para a Coelba, empresa de energia elétrica da Bahia, registrando a ocorrência e fiquei esperando voltar a vida normal a qualquer momento, como avisou a atendente. Pensei em costurar mas faltava a máquina; bordar, mas a luz era pouca; ler, mas o vazio do dia me tirou a atenção. Desliguei o celular para economizar a bateria, fui varrer o pátio e admirar a bela luz da tarde nas plantas do jardim…. Preparei as velas e lanternas, o dia acabou e a vila virou um breu.
A programação, como em todas as noites em que isso acontece, seria ouvir o silencio da noite contando estrelas, pensar na vida e dormir cedo. Ocorreria se não tivesse como hóspede Dante, um menino de 4 anos, esperto, inteligente e com criança tudo pode virar brincadeira. Foi assim que a grande atração a luz de velas foi a minha coleção de caixas de música. Há quanto tempo eu não as ouvia! Como fazem bem à minha alma. E foram saindo, uma a uma, do pequeno armário de vidro e postas na mesa de centro da sala. Não contei a ele que quando criança quis muito ter uma caixinha de música. Pedi ao Papai Noel, depois aos namorados, aos maridos, mas creio que meus pedidos não foram tão relevantes pois jamais ganhei. Até que ao chegar na casa dos 40, participando de um grupo de estudos de neolinguística, quase uma terapia em conjunto, surgiu o assunto de desejos simples não realizados e alguém perguntou: onde ficou a sua criança?
Bem, encontrei a minha no dia seguinte ao passar por uma loja num shopping e avistar na vitrine uma caixinha de música. Estava eu ali, cabelos claros e encaracolados, as mãos segurando o vestido, sapatos de pulseirinha, bem colocada em cima de um coração cor de rosa. Comprei, pedi para embrulhar para presente e ao chegar em casa abrir e pus a tocar e a menina a dançar como eu fazia quando criança ao som de Hi-Lilly, Hi-Lilly, Hi-lo do filme “Lilli” com Leslie Caron, Mel Ferrer e Jean Pierre Aumont, paixão da minha infância.
Depois dessas surgiram outras… Presentes de amigos, lembranças de viagem. “Pour Elise” na caixinha que trouxe de Geneve, “I Left my Heart in San Francisco” tocado num bondinho da cidade na Califórnia, a engrenagem antiga exposta em uma caixinha de acrílico com uma canção medieval que encontrei no Mosteiro de Montserrat na Espanha . Também tem “Lago dos Cisnes”, “Hino ao Amor”, cantigas folclóricas, “Let it be”, “New York, New York”, enfim um repertório diverso que enche meus olhos e meu coração.
E assim ficamos, eu e Dante, colocando todas as caixas para tocar ao mesmo tempo, levantando tampas e deixando a bailarina dançar, os patinhos rodar num lago de espelhos, o piano a disparar Bethoven ! Uma noite mágica para mim e para ele. Nunca foi tão boa a falta de luz…
Foto : Cláudia Schembri
Muito singelo e delicado momento, de encantamento e d magia . Senti o cheiro da cera. Voce é muito especial, Lea.
@ iPhone do Roberto Abramson.
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…porque somos “dos mesmos tempos”, suas reflexões podem ser as minhas, sempre ou quase sempre, claro!
Quantas vezes no sítio do Rio passei por momentos como esse que você descreve com tanta propriedade e beleza, mas aqui em Poços de Caldas isso nunca aconteceu, mas de qualquer maneira, é possível “desligar” tudo e sair pro quintal e ver estrelas. Para quase tudo de bom e simples nessa vida, basta querer. Deus a abençoe, amiga distante, que tenha sempre essas singelas reflexões que só a vida em sua forma mais integral, proporciona. Saudade, Marilia