Me lembro que estava no colo de alguém e acordei na porta da escola. Esta é a mais remota lembrança que tenho. Devia ter 3 ou 4 anos, criança não ia para a escola nesta idade mas minha mãe era professora e as freiras abriram uma exceção. O Ginásio Beatíssima Virgem Maria, no bairro do Brooklyn, São Paulo, foi a extensão da minha casa. Ainda sinto o aroma do café com leite que saía do enorme bule de metal que as freiras serviam no lanche acompanhando fatias de pão com geléia; o medo do olho de Deus onipresente e onisciente desenhado no quadro negro nas aulas de catecismo e o sabor das nêsperas e jabuticabas roubadas do pátio da escola.
Por volta dos 8 anos ganhei uma bicicleta preta com finos frisos vermelhos. Não era nova, era “herança” de minha irmã que papai mandou reformar. Pedalei muito e com amigos ia à beira de um pequeno rio tomar banho e depois ficar correndo sob o sol até secar e voltar para casa sem vestígios. Desenhei com giz plantas baixas de casas de bonecas no cimento do jardim e ali vivia entrando e saindo apenas pelas mini portas que inventava. Ninguém podia pular as paredes…
Sentei muito no muro para ficar vendo as pessoas passarem na rua. O movimento era pequeno, mas eu sentia que ali do alto tinha domínio do mundo. Montei laboratórios com vidros de remédios, fiz experiências misturando mercúrio cromo com pedrinhas de anil azul e com um pouco de goma de roupa fazia comprimidos em formas de botões.
Costurei roupas de bonecas, me escondi embaixo da escada e com alguns velhos “bobs” que mamãe enrolava os cabelos, grampos e um espelhinho fiz um salão de beleza ! Tomei Crush aos domingos, assisti na TV ao Circo do Palhaço Arrelia e o Pullman Junior, desenhei em cartolina o Palácio da Alvorada e tirei nota 10 por saber escrever no quadro negro Juscelino Kubitschek. Fui mimada, paparicada e bebê até os 9 anos quando nasceu meu irmão Marcus.
Uma noite depois que a porta da geladeira caiu no dedão do meu pé papai achou por bem que eu ficasse acordada vendo TV, atento que estava ao machucado. Creio que foi nesse dia que a minha infância acabou. Descobri Maysa e literalmente “meu mundo caiu”. Fiquei perplexa com a figura que entrava num estúdio esfumaçado decorado com pilastras greco-romanas, cabelos curtos caídos nos olhos, trazendo na mão uma taça de bebida e cantando “Ouça”… Aquilo não era coisa prá criança ver! Eu vi e fiquei encantada. Era a mais pura vanguarda, um planeta que eu não conhecia, muito além das bonecas, bicicletas e dos bobs da mamãe…
Ali a mágica se fez e me seduzi por este mundo diferente de artistas… Conheci Maysa em 1970 como jurada do programa Flávio Cavalcanti. Contei que antes dos 10 anos havia trocado a trilha sonora de criança por suas músicas. Criamos uma relação de amizade… Em setembro de 1973 procurei Maysa para uma entrevista. Na cobertura de seu apartamento, na Rua Almirante Pereira Guimarães, em Copacabana, conversamos uma tarde inteira e na saída ela me deu 4 folhas de papel A4 dobradas ao meio com uma pequena autobiografia manuscrita. Hoje, no dia da criança lembro a minha infância e óbvio, de Maysa… O que ela escreveu prá mim, segue abaixo…
“Nasci no Rio, sou de gêmeos, dia 6 de junho. Nasci em Botafogo, em casa mesmo, na Rua Visconde de Silva. Hoje em dia é uma clínica, tenho imensas saudades daquela casa e sempre sonho com ela.
Tenho um irmão, Alcebíades, já casado com Dorinha e tem uma filha linda, chamada Maysa como eu. Meus pais são maravilhosos, minha mãe é linda e papai tem os olhos mais azuis que já vi. Sempre foram meus amigos e companheiros em tudo e para tudo.
Só não gostaram quando eu comecei a cantar. Deram o não. Hoje, porém são fãs incondicionais.
A música sempre foi importante prá mim, desde menina. Minha tia Lia era pianista excelente e quando ela estudava, eu ficava horas e horas sentada ao lado dela ouvindo música clássica.
Aos três anos eu já sabia tocar alguma coisa com os dois dedinhos. Aos seis ia dar meu primeiro concerto de piano mas caí doente com sarampo. Aos sete outra vez, mas tive catapora: assim nunca pude levar a serio uma carreira de pianista, hoje uma de minhas frustrações.
Já casada, esperando Jayminho, meu filho hoje com 17 anos, numa festinha em casa toquei algumas de minhas músicas que compunha desde os 13 anos.
Estava lá Roberto Corte Real que me convidou para gravar um disco logo que o “baby” nascesse. Meu pai era muito amigo de Silvio Caldas, Elizeth Cardoso, que sempre estavam lá em casa. Silvio foi a primeira pessoa que me ajudou a tocar violão. Com Elizeth aprendi muito para depois partir para cantora.
Não foi fácil conseguir ser profissional.
Para poder seguir essa profissão tive que abrir mão de muitas coisas e por fim não podendo mais, larguei até meu casamento, minha casa enfim, a minha vida de moça de sociedade para seguir a minha verdadeira estrada.
Devo ter mais ou menos uns 23 LPs. Muitos feitos no Brasil, 2 nos States, Itália, Espanha, Argentina, etc.
Compus muitas e devo ter gravado umas 50. Elas sempre refletiam meu estado de alma, minha tristeza e solidão. Nunca consegui escrever nada alegre.
Fora do Brasil estive 7 anos.
As razões foram várias, mas a a principal foi meu segundo casamento. Meu segundo marido, Miguel Azanza, era espanhol e todos os seus negócios estavam na Espanha.
Segundo, foi querer levar Jayme para que ele tomasse contato com a vida num local onde ele fosse apenas Jayme, e não Jayme Matarazzo. Para que ele aprendesse a se valorizar pelo o que ele é e não por outras coisas que poderiam ocorrer em face de seu nome.
Com a morte de André, meu primeiro marido, levei Jayminho para a Espanha e não me arrependo.
Atualmente a minha vida chegou a um ponto onde há um equilíbrio agradável, embora eu esteja dando os meus primeiros passos para que o equilíbrio seja total.
Muitas vezes ainda me sinto perdida, só, o que é normal para quem se colocou tanto tempo nessa situação.
Carlos Alberto e eu temos muitas coisas em comum, inclusive uma vivência adquirida nos tantos erros anteriores. Fomos pessoas machucadas e machucamos. Tudo o que sou agora é uma conseqüência lógica do que passei. Só que procuro tirar de bom o que ficou e jogar fora o que não interessa.
Há anos venho em busca de um local que me permitisse uma paz quase que inacreditável. Antes era na Barra da Tijuca, há 16 anos atrás onde eu tinha uma casa e vivia em perfeita harmonia com meus bichos, o mar e uma turma da pesada.
Hoje é uma praia distante onde vivo na mais completa harmonia com Carlos, os bichos, o mar e mais ninguém a não ser essa nova expressão que está nascendo em mim já há algum tempo, que é a pintura. Levei um piano onde pretendo compor algumas coisas, levei meu cavalete, meus discos e levei a minha paz que, justamente com a de Carlos, nos faz pensar num pra sempre.
Jayminho hoje tem 17 anos, é bonito, rico, toca violão, pinta, é bacana e um ser humano maravilhoso, que muito me ajudou no encontro dessa paz que hoje em dia é a minha constante.
E se às vezes derramo o caldo, ele é quente, não mais fervente. É isso ai. Bicho!”
Maysa
setembro de 1973
Em tempo : o meu pé ainda tem a cicatriz da porta da geladeira.
Quanta emocao ao ler estas linhas? primeiro de sua infancia,Lea,muito tenho de igual a lembrar…colegio de freiras,as refeicoes no refeitorio imenso,os uniformes,aFOTO…igual, a bicicleta herdada de minhas irmas,os tombos e tudo o mais,bj mesmo falei, crianca feliz,adulto feliz,portanto,entendo,q tambem resolvido,com todos os altos e baixos que logo deparamos em nossas vidas…
Ai vem a entrevista com a Maysa…emocao novamente..ai ,pelo prazer de ler algo sobre, nao soh sobre a figura que ela foi,mas o orgulho de ler o nome de meu querido pai,meu idolo,sendo lembrado por voce,na pequena bio. de Maysa.
Tambem tenho essa mesma lembranca q a Maysa tinha,de ter tantos e tantos nomes de artistas,musicos e intelectuais em nossa casa. Muitos passaram por la, e com certeza deixaram algo deles em nossas vida,pois as pessoas vai e vem e sempre deixam algo,mesmo que nao percebamos…a mais remota como voce disse, eh ver o Erlon Chaves ao piano,se nao me falha a memoria,estava eu nolo dele,e na curiosidade dos meus cinco anos,pergunto a ele se ele era moreninho,em outras palavras,porque ele tomava muito cafe…provavelmente por eu ouvir muito de minha mae q quem tamava mto cafe ficava moreno e mais morene…e eu gostava de cafe puro…ah ,lembrei tambem dos desenhos com giz ,eu tambem adorava ,desenhava em todo lugar ,e tudo tambem,desde fogao,panelinhas,casinha etc…depois no Rio,eram os castelos de areia…ja se esbocava a tendencia para o campo das Artes,mas artes plasticas…perdao ,mas vc me emocionou tanto q nao parei de escrever…lembrancas ao meu amigo de infancia,q gostava de pave e dizia que era um mes mais velho q eu,ja q temos um mes de diferenca,mas nao em anos,rs….dezenove de abrilxdezenove de maio…um enorme beijo a voce parabenizando mais uma vez por essa lindo dom da escrita q voce tem!
Léa querida muito obrigada por este lindo texto da sua infância.
Entrei no tunel do tempo e relembrei a nossa infância quando éramos
vizinhas e brincávamos juntas,foi um tempo maravilhoso.
Você ia em casa brincar mas antes a mamãe pedia prá você recitar para
ela,a vovó e as tias que lá estavam,você é uma oradora nata.
Que delícia ler seu texto e relembrar a infância gostosa ao seu lado
mesmo que só por seis ou sete anos .
Um beijo carinhoso cheio de saudades.
Neide.
Léa,
Há tempos te escrevi perguntando como você havia conhecido Maysa e você tão atenciosamente e generosamente fez o lindo relato, porém, não havia mencionado o que ela tinha escrito em sua autobiografia. Obrigada por ter compartilhado conosco!
Há, em tempo: você era uma linda menininha!
Um abraço,
Manuella