Os 30 anos da morte de Elis Regina, razão para tantas lembranças e projetos sensacionais, também me faz entrar no tempo e relembrar o que escrevi no livro “Um Instante Maestro! (Capítulo 22, pag 157) … Muitos jornalistas tem alguma coisa prá contar, afinal Elis foi pródiga em entrevistas e relações com a mídia. No texto abaixo está a minha historia e o orgulho de ter feito a sua última entrevista. Como ela era genial ! Saudades de Elis!
“Ao lado de Simonal e Roberto Carlos, Elis Regina era atração fixa do Programa Flávio Cavalcanti. Uma vez por mês, lá estava a baixinha no palco da Tupi com toda aquela emoção visceral, voz afinadíssima, forma única de divisão rítmica e um perfeito equilíbrio entre a técnica e a sensibilidade. Elis já era a mais importante cantora brasileira. Apresentava-se nos melhores palcos do mundo e, na televisão, com exclusividade para o nosso programa. Fazia turnês pelo exterior, e em 1969, junto com Roberto Menescal, percorreu alguns países da Europa, com muito sucesso. Mas, em entrevista a um jornal holandês, baixou malhação no regime político do Brasil, chamando, inclusive, os militares de “gorilas”. Quando voltou o circo já estava armado. Através de Armando Nogueira, diretor de jornalismo da TV Globo, soube que o pessoal do Exército estava querendo ter uma conversinha com ela. Os militares foram informados sobre suas declarações no exterior e não gostaram nem um pouquinho. Elis não tinha contrato com a Globo, apenas uma relação profissional, mas era comum naquela época todos se ajudarem em casos como esse. Por isso ela foi depor no CIE – Centro de Informações do Exército acompanhada do jornalista Aníbal Ribeiro, assessor de Walter Clark, então diretor geral da TV Globo. O jornalista não teve acesso ao local do depoimento e contou apenas que o encontro foi rápido. A cantora saiu comentando que havia sido bem-tratada, mas não entrou em detalhes. Para Ronaldo Bôscoli, seu marido na época, no entanto, contou que levara um aperto, que lhe tinham sugerido uma temporada fora do país e que diante disso resolveu não mais criticar o regime.
Aperto ou não, Elis passou a restringir seus comentários sobre política para as quatro paredes de casa, e dois anos depois, em 1972, cantava o Hino Nacional num show nas Olimpíadas do Exército, dentro das comemorações pelo Sesquicentenário da Independência. Elis teria participado desse show porque o cacho pedido por Marcos Lázaro, seu empresário, era muito bom, e foi aceito pelo coronel responsável pela contratação dos artistas. Antes de fechar o contrato, Marcos lembra que consultou Elis e ela lhe disse que não tinha a menor objeção em fazer essa apresentação.
Pressionada ou não? Essa pergunta vai continuar sem resposta. O fato é que a história nunca foi digerida pela esquerda. A cantora passou a ser considerada simpatizante do regime e cabou sendo pichada. Nessa época, o cartunista Henfil publicava semanalmente no Pasquim o “cemitério dos mortos vivos”. Eram pequenas lápides com os nomes das pessoas que considerava de direita, onde ele fazia os “enterros”. Elis foi enterrada ao lado de Marília Pêra, Simonal, Roberto Carlos, Pelé e outros “traidores”.
Até 1973, com a esquerda massacrando, Elis permaneceu como contratada do Programa Flávio Cavalcanti. Nesse mesmo ano, transferiu-se para a Globo para participar do programa Som Livre Exportação, e, aos poucos, as facções políticas foram se rendendo ao seu indubitável talento. Foi louvada, endeusada, aplaudida. Até o próprio Henfil, tempos depois, tornou-se seu amigo. Muitos anos depois, no final de outubro de 1981, Elis veio ao Rio para assinar contrato com a gravadora Som Livre e estrear o show Trem Azul. Depois de um badalado coquetel no Hotel Caesar Park, numa suíte no vigésimo andar, ela me deu uma entrevista exclusiva para o jornal O Globo. Já nos conhecíamos há muito tempo. Antes de trabalhar com Flávio, eu fizera algumas reportagens com ela, inclusive a do nascimento de João Marcelo, seu primeiro filho. Elis estava com 36 anos, três filhos, dois casamentos, e era o maior nome da música brasileira. A sua frente eu sentia um misto de culpa e constrangimento. Apesar de ter entrevistado dezenas de pessoas tão famosas quanto ela, o que me deixava assim era o fato de estar envolvida emocionalmente com seu ex-marido, o pianista César Camargo Mariano, o que ela não desconhecia.
César passava as noites contando detalhes do casamento com Elis, as brigas, as voltas, os filhos, os erros, e, pacientemente, eu ouvia. Aquele romance, na versão dele, eu conhecia do avesso. E Elis também sabia disso, mas em nenhum momento naquela entrevista deixou de ser sincera, inteira, corajosa; expunha seus sentimentos sem reservas. Muito agitada, falando sem parar, às vezes interrompia o discurso, ia até o quarto e voltava ainda mais acesa, com um copo de vodca na mão. Conversamos até de madrugada, e, quando fui embora, ela me levou até a porta do elevador, me deu um longo abraço e disse baixinho em meu ouvido: “Eu não sou tão ruim como dizem.” Não sabíamos que aquele seria nosso último encontro e aquela sua última entrevista. No dia 19 de janeiro de 1982, quando eu morava em Nova York, soube de sua morte brusca e tumultuada. Ela não merecia ir assim.
Eis alguns trechos da entrevista.
“Casamento e separação:
‘Não estou preocupada em fazer uma avaliação de perdas e danos, nem rescaldos de incêndio. Isso não faz o meu modelito. Viver é melhor do que sonhar, por isso eu quero é mais.’
Produção de shows:
‘No Brasil a aspiração é americana, mas a organização é macunaímica. Quem está no palco envolvido com o processo de criação não vê, só sabe o que está acontecendo através de informações carregadas de visões pessoais, que acabam virando um patchwork, verdadeira colcha de retalhos de tendências. O fato de ser artista e empresário faz com que o artista, muitas vezes, acabe tomando aversão pelo que está fazendo, pois sabe que no final do mês tem que pagar INPS, FGTS e outras coisas.’
Cantar:
‘Cantar para mim é uma coisa séria, um sacerdócio. O resto é o resto. O meu futuro é cantar, pois quando ficar velha, como a Edith Piaf, vão me colocar no palco, e esta é a única coisa que vai me restar. Até meu filho, que tem onze anos, já passa noites fora de casa. Dediquei minha vida a cantar, e não tem homem, nem pai, nem mãe que me tire disso. Quem atravessar no meio para dividir ou diminuir vai ser atropelado como um trator passando por cima de uma margarida. Nada me segura quando o maestro conta quatro. Aí, danou-se! A catarse acontece, tem até vomitórios. Sábado passado chorei durante o show por causa de uma conversa que tive com minha mãe. Eu tenho o prazer de me danar e me recompor sozinha. Não preciso de muletas.’
Psicanálise:
‘É muita individualidade para a minha cabeça, que trabalha em mutirão, pagar três milhas por hora para falar dos meus problemas. Resolvi que nada mais me chateia, a não ser febre de menino. As pessoas ditas corretas estão frustradas por não terem um tipo de vida como a minha. A perfeição é uma meta defendida pelo goleiro, já disse Gilberto Gil, e, como não sou Waldir Peres e nem quero jogar na seleção, não estou preocupada com isso. Só quero levar adiante a minha vida sem machucar ninguém. É claro que continuo amarrando bodes e pagando caro o preço da liberdade. Tenho pânico de solidão, mas estou aprendendo a fazer mil coisas, até a jogar paciência comigo mesma. A minha lucidez me leva às raias da loucura.’
Amor-próprio:
‘Eu sou apenas o meu tipo inesquecível, apesar de às vezes me achar uma porcaria.’
Filhos:
‘O encargo de estrela é pesado, mas pior ainda é ode mãe. Eles que se virem como eu me virei. Meu pai era chefe de expedição numa companhia de vidros, minha mãe de prendas domésticas, e eu cantora. Ninguém me valeu de nada, meus filhos vão ter que se virar. Ferre-se o avião que eu não sou o piloto.’
Emoção e técnica:
‘Não há artista que não tenha técnica e parâmetro para obedecer até chegar a um determinado ponto num show. Ficar uma hora e meia em cima dum palco com um sapato de salto alto e o estômago dançando, se não tiver um mínimo de controle, a cabeça estoura. Quem não tiver sutileza para entender que quem está ali é um ser tímido pode pensar mil coisas. Eu sou tímida, até as palhaçadas são um reflexo.’
Final:
‘Resultado final só quando eu acabar, e assim mesmo vou deixar testamento, mas não sei se vão me respeitar. Na verdade eu não afirmo nada em relação a ninguém: só dou o tiro, quem mata é Deus.”
Lea, parabéns pelo texto e pela entrevista com a Pimentinha. Bjos
Elis, uma pisciana como raras…Intensa, autêntica, viveu coerentemente com o que acreditava! “Essa mulher…em quem esbarro a toda hora”…, através de música, de mim mesma, de filmes, enfim…através da VIDA!
MARAVILHOSA tua reportagem, as always! Léa e obrigada por tanta coisa boa. bj
Eu estive com Elis no seu camarim do Teatro Ginástico, no Rio, quando ela fazia o show “Transversal do Tempo”, ainda casada com
o Cesar Mariano. Tive acesso ao camarim graças ao Aldir Blanc, um dos roteiristas do show, e fui falar com ela como compositor, levando minha fitinha cassete. Essa historia tem outros lances, claro, e está no meu livro “Gloria ao rei dos confins do além”, que vai ser lançado dia 20 de março na Livraria Travessa do Leblon.
Legal, Lea! Obrigada por nos brindar com textos bem escritos, onde passa suas experiências mundo afora. Ah, se todo mundo usasse a internet para isso. Um beijo.
Eu morava em São Paulo, em 1970, e a Ione Campos Cirillo estava trabalhando com a Elis e me convidou para um show naquela casa enorme do Abelardo Figueiredo, cujo nome não me recordo. Apesar de nossas loucuras, tínhamos nossas éticas e estéticas nos anos-70. Como o vestido da Elis ficava transparente com a iluminação do palco, ela não poderia cantar de jeito nenhum. Aparecer a calcinha era feio, uó. Ione saiu catando uma anágua entre os convidados. E encontrou a minha anágua. Apesar de ser baixa, eu era mais alta do que a Elis, que teve de enrolar a cintura de elástico. Mas Elis levantava os braços demais, e o “figurino” desmoronava. Foi um show de anágua.
Lembro também de uma entrevista que fiz com ela, acho que para o Domingo Ilustrado do Samuel Wainer, para a Bloch. O Ronaldo Bôscoli marcou para a noite e eles fizeram questão de oferecer o jantar. Frango assado crocante e a melhor farofa de ovo, com muita manteiga – tudo simples assim – que comi em toda a minha vida.
Leleca, tudo que diga respeito a Elis me emociona profundamente. Como cantora, inigualável por tempos e tempos e como mulher uma representante de quem viveu os anos 70 torturados pela ditadura ou pela indiferença burra e acomodada frente ao sistema.Acho que nem ela soube o que escolher. A música era sua alma, sua vida, sua escolha. Anos de rebeldia, anos de romper laços, de sair abrindo caminhos como ela abria os braços no grande arrastão. Vista pelos seus olhos, ficou mais bonita ainda. Como você é boa nessa coisa de escrever, né não, Leleca? Adoro !
Beijo grande
Nenô