Vida longa

cerca

Entre uma taça e outra de vinho, em meio a uma boa conversa na varanda cercada por um belo gramado e árvores, a dona da casa sentencia: “os nossos velhos não estão nos deixando viver a nossa velhice”. Médica, cientista, doutora, pós doutora, um currículo de primeira linha, aposentou-se aos 60 para viver diferente. Foi aprender a velejar, equilibrar-se no stand up paddle, cuidar do jardim, gastar horas com pequenos trabalhos em madeira na oficina bem equipada e conviver com a pequena comunidade. Um tempo tranquilo para quem estudou e trabalhou muito. Mas vez por outra está às voltas com a mãe de 90 anos, lúcida e independente, que mora no Rio.

Vejo este fato se repetir com tantos outros amigos. Maior longevidade alguém tem que olhar os velhos. Os meus queridos já se foram, não coube a mim cuidar deles, e fico conversando com meus botões sobre o tema que não adianta fugir, faz parte do caminho. Esta semana com a notícia da morte prematura da jornalista Beatriz Thielman com quem tive pouco contato mas admirava a forma segura e tranquila como conduzia as entrevistas, pensei o quanto vale partir antes de passar pela aposentadoria e a velhice… Não gosto muito da expressão “velhice”, mas considero 3ª. idade marqueteiro demais, e chegam até a falar na 4ª. idade com muitos centenários vivendo com saúde.

Dercy Gonçalves, uma sábia que muito me ensinou, dizia que “velho é tudo que não presta e se joga fora”. Mesmo o termo velhice tendo um sabor de poesia derruba qualquer astral.  Mas como disse um amigo “se nosso egoísmo em viver eternamente imperasse hoje seríamos 80 bilhões de habitantes neste planeta” … A verdade é que ora excluída, ora enaltecida, a velhice é o assunto que temos pra hoje. Penso nisso, não me tira o sono nem tão pouco me deprime pois os exemplos que tenho são ótimos.

A bisavó do meu filho, Mercedes Martins, a primeira mulher jornalista no país segundo a ABI (Associação Brasileira de Imprensa) que anualmente enviava um carro à sua casa para que comparecesse as reuniões mais importantes, aos 84 anos de idade só saia do quarto maquiada. Vaidosíssima, dormia com papelotes no cabelo alourado, passava rouge nas maçãs do rosto, batom vermelho desenhando os lábios e sobrancelhas pintadas. Tocava violão, cantava, conversava em espanhol. Inglês e francês, fazia o maior sucesso com os amigos do neto. Muitas histórias da “vovó” como num réveillon, lá nos idos de 70 quando ainda não havia multidão em Copacabana, depois que todos deixaram a festa no seu apartamento na Av. Atlântica, recolheu os copos, limpou cinzeiros – ainda se fumava, e muito! – e avisou que não ia dormir. Foi para a janela esperar o sol nascer.

Tive uma vizinha sensacional. Italiana, Edoarda Casadei viveu até os 84 anos e lembro que mesmo depois dos 80 podia vê-la bem cedo tomando banho de mar vestindo apena a parte inferior do biquíni. Seu corpo era de menina, altura pouco mais de 1m40, bem magrinha. Cabelos vermelhos andava pela vila usando vestidos curtos, sempre seguida pelas crianças que a achavam uma igual. Vila de vida longa…

Santo André - Santa Cruz de Cabrália - Bahia - Brasil

O ano passado na festa de 101 anos, o aniversariante Sr. Enoch, tocou cavaquinho, cantou e conversou com todos. Qualquer carro que passa pela estrada que circunda a vila pode ver a placa pedindo para diminuir a velocidade e se tiver sorte ainda o encontra no quintal roçando o mato, dando comida para galinha ou simplesmente deitado num banco, pernas cruzadas para o alto apreciando as folhas da grande mangueira.

Sr. Enoch

Como mostram as pesquisas a longevidade dos brasileiros vem aumentando e desde 1980 ganhamos mais 10 anos de vida. As mulheres vivem mais que os homens e daqui a três décadas seremos um país tão envelhecido quanto o Japão, diz o médico Alexandre Kalache, ex-chefe do Programa de Envelhecimento e Saúde da OMS (Organização Mundial da Saúde). Já escolhi aonde envelhecer com alegria e segurança. Sei que vou poder sair às ruas de camisola e ninguém vai reparar. Sempre vai ter alguém me mostrando o caminho de casa, com carinho e consideração, pois podem não cuidar bem das crianças mas os velhos da minha vila são muito bem tratados. E como as pesquisas confirmam que a maioria das pessoas morrem mesmo é do coração, vou permitir que aquele em mim que palpita, ama, se apaixona e se derrama, bata no tempo certo e aqui ficarei para virar areia, poeira nas ondas do mar.

 

 

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Uma resposta para “Vida longa

  1. Lea, Amei o texto.. a parte de vc vestida de cami sola é impagável!! Venho me reinventando a cada dia, principalmente agora depois da minha cirurgia. E quero que saiba que aprendo muito lendo seus textos. No momento, estou com seu livro devorando, algumas vezes rindo sozinha de situações, outras aprendendo e outras espantadas com situações que vc como ninguém se saia divinamente bem. Bjs

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