Eu moro numa vila que tem mais história do que qualquer outro condomínio, bairro ou cidade por onde passei. Às vezes me sinto em Macondo, outras em Sucupira. Viajo de Garcia Marques à Dias Gomes num piscar de olhos. Por ser tão pequena tudo se sabe, tudo se ouve, tudo se fala. Não precisa de rádio ou jornal, as conversas surgem na balsa, na porta do mercadinho, no caminho de casa pedalando nas ruas. Já ouvi contar que em um velório o grande amigo da falecida deitou embaixo da mesa onde repousava o caixão e ali passou a noite velando o sono eterno. Mas as histórias que mais gosto são as de amor.
Conheci uma moça cujo casamento estava em crise. Morava numa capital, era psicóloga, tinha um consultório com muito movimento, mas em vias de separação resolveu pedir um tempo e veio passar uns dias na Bahia. Baixa estação ruas vazias, silencio, perfeito para reflexão. Alugou quarto em uma pousada, caminhava na praia, comia prato feito nos restaurantes simples, via lua nascer, sol se pôr, ouvia as conversas nos bares e foi assim que conheceu um nativo. Artesão, rapaz jovem, corpo malhado, pele com aquele tom que mistura índio e negro, conversa sedutora, não demorou muito para a carência e o tesão se encontrarem e rolarem na areia. Sem preocupação andavam pelas ruas abraçados, juras de amor eterno e 15 dias passaram muito rápido. Ela voltou para casa certa que queria outra vida, quem sabe até num povoado assim, algo mais apaixonante, orgânico, visceral. Pediu o divórcio, voltou a morar com a mãe e durante 4 meses o namoro a distância pegou fogo em intermináveis conversas ao telefone. A mãe não entendia como tinham tanto assunto apesar da enorme diferença social. A moça tinha mestrado, viajado o mundo, casado com um engenheiro de família tradicional, mas se encantara com o nativo e contava os dias para reencontrar. Programou um verão inteiro com ele. Alugou uma casinha no centro da vila, bem no meio do buchicho, em frente ao campo de futebol, onde nos fins de semana a música de gosto duvidoso corre solta em alto volume. Mais ´[e no chão impossível. Se preparou como noiva. Fez enxoval com camisolas sensuais, vestidos de alcinhas, biquínis e cangas, embarcou no voo da paixão e ele a esperava na balsa. Foram para a casinha que ela só conhecia nas fotos do face. Era bem rustica. Sem forro, telhas à mostra, um calor infernal, mas ela teve o cuidado em fechar a janela para se amarem sem medida. Quando o dia clareou ele correu no mercadinho trouxe o pão e pó para o café. A primeira refeição juntos em nova vida. E assim que acabou ela foi arrumar as roupas no pequeno armário e deu a ele um papel e lápis para anotar as compras que precisavam fazer. “Macarrão, sabão, açúcar, bombril… “ ia ditando enquanto pendurava um vestidinho mas percebeu que ele não anotava. Sentado no banquinho, apoiado na mesa, olhava a folha em branco. “Anota aí senão a gente esquece”, brincou com o rapaz que envergonhado confessou “não sei…”
Ela pirou. Como assim?
A encontrei neste dia andando na praia sem rumo e ouvi a história. Ela disse que superaria a diferença social, a cor e a cultura. Viveria numa casa com telhado sem forro, ouviria o som dos vizinhos, mas analfabeto não. O amor não tinha tempo, ela tinha pressa para ser feliz. Deixou a casinha, mudou para o único hotel da vila, a mãe veio busca-la e partiu antes do ano novo. Nunca mais apareceu. Ele hoje frequenta o EJA (Escola para Jovens e Adultos) quem sabe quando chegar um outro amor ao menos saiba fazer a lista de compras.
Esta outra historinha ouvi aqui, mas começou em meados do século passado. Como em qualquer lugar do planeta, um casal se conheceu, namorou, casou, teve filhos e separou. Ninguém sabe o que aconteceu, a realidade é que ele não quis mais saber dela. Abandonou com os filhos e foi embora dizendo a quem quisesse ouvir que daquela mulher não queria nem guardar a voz. Os filhos perderam o contato com o pai, de vez em quando alguém chegava com a notícia que ele tinha sido visto em outra cidade. Não casara nem tinha família, apenas empurrava a vida com a barriga. Filhos cresceram, seguiram outros caminhos e, como acontece em muitas famílias, uma filha ficou cuidando da mãe e veio morar bem perto da minha vila. Um dia recebeu o recado que o pai estava praticamente mendigando em uma localidade não muito distante. Botou o carro na estrada e foi a procura do velho. Mais do que o receio com a saúde do pai tinha a questão do que fazer com ele, como trazer para viver com aquela a quem tanto odiava. Encontrou o pai doente e cego. Se não enxergava, menos mal. Não avisou a mãe e chegou com o pai em casa. A mãe olhou, olhou e não precisou muito para reconhecer o antigo amor agora bem-acabado. Os demais filhos se emocionaram, ela ficou num canto só olhando e, quando todos já estavam rindo, se aproximou se apresentando ou com outro nome. Ninguém riu, contestou ou questionou. Aceitaram a persona que a partir daquele momento passou a se dedicar ao ex-marido. Cuidava, dava comida, remédios, conversavam sentados na varanda. O que aconteceu entre os dois no passado nunca os filhos souberam, mas o que viram foi a mãe cuidando do pai nos últimos anos de vida. Ele repetia sempre que ela era uma boa mulher, muito diferente daquela com que havia casado. Ela ouvia e não retrucava. Amor não se explica.