Ontem me lembrei de você. Comercialmente foi seu dia, mas prefiro pensar que foi simplesmente um dia como todos os outros 22.279 em que você esteve em minha vida. Lembrei das nossas conversas, em especial uma que considero a grande lição. Mais importante do que quando falávamos sobre a fé que você tinha dificuldade em admitir apesar de tantos santos e anjos na estante do seu quarto, bem mais do que o bordado em ponto de cruz que você me ensinou fazer ou a nossa árvore genealógica. Foi uma conversa nos primeiros dias de dezembro de 2009. Eu saía de São Paulo para passar o fim de ano em casa na Bahia e resolvi parar no Rio apenas para lhe dar um beijo. Uma parada de amor e a encontrei sentada em sua cadeira na sala de televisão. Do seu lado esquerdo a cesta com linhas do tricô, do outro a mesinha coberta por uma toalha de crochê feita pela vovó onde você sempre deixava uma tesourinha, agulhas, um lencinho, um bloco com caneta…Tirei os sapatos, me estiquei no sofá, começamos a falar sobre as festas do fim do ano quando você desabou…
Sim, literalmente você desabou e despejou sobre mim a tristeza com o Natal que chegava. Você não queria nem mesmo montar a árvore com bolas azuis e o presépio. Você estava cansada para preparar a ceia, tirar a louça do armário, abrir o faqueiro e receber filhos, netos e bisnetos. A bem da verdade esta festa foi esvaziada em nossa família com a partida do papai que sempre puxava um animado e desafinado coro de Noite Feliz, e 21 meses depois quando o Victor foi se encontrar com ele na antevéspera desta data. Mas você estava em uma saia justa. O seu filho “meu tudo”, como você mesmo o denominava, queria reunir filhos e netos. Como ele morava com você a festa seria em sua casa. Sugeri que deixasse ele encarregado da festa, demoraria no máximo umas 4 horas e você poderia ficar no quarto com a Chica assistindo TV… Mas isto era impossível para você sempre uma cuidadosa anfitriã. E foi nas possibilidades que eu apresentava para minimizar o desespero que veio a frase fatal:
– Mas não faz mal, eu vou morrer antes e o Natal não vai acontecer.
Pulei do sofá, puxei o banquinho, sentei na sua frente, segurei suas mãos, e por mais duro que tenha sido falei com carinho.
– Não seja tão prepotente mamãe… você pode até morrer, mas o Natal vai acontecer de qualquer jeito… Com ou sem você…Ele existe há mais de dois mil anos…
Ela parou, pensou e retrucou:
– Então vou morrer em janeiro.
Continuei o diálogo como se conversássemos sobre o cardápio da ceia.
– Não mamãe, você não vai morrer em janeiro pois estarei na Bahia e vou fazer 60 anos. Por favor não estrague a minha festa…. Em janeiro as passagens são difíceis, mais caras, estarei com hóspedes e não terei como vir ao seu enterro…
Respirei fundo, não acreditava que isto estava acontecendo, e ela não se deu por vencida…
– Então eu morro em fevereiro!
– Fevereiro nem pensar – contestei – Vou estar trabalhando para o Dody no navio do Roberto, já imaginou que confusão o navio ter que parar apenas para eu descer e vir ao seu enterro… Vamos combinar o seguinte: você fica quietinha até maio no seu aniversário de 90 anos. Depois disso voltamos a conversar sobre a morte.
E você aceitou minhas ponderações. Tomamos um café, conversamos banalidades e peguei meu voo para a Bahia. Na noite de Natal quando telefonei você estava bem animadinha com a festa. Passou meu aniversário e como sempre fazia você colocou um dinheirinho na minha conta “para comprar uma blusinha”. Vieram fevereiro, março, abril e começamos a planejar sua festa de 90 anos dia 5 de maio aproveitando o feriado do dia 1º quando filhos e netos distantes poderiam ir ao seu encontro num almoço em família. Tudo pronto, família chegando de São Paulo e do Paraná, o feijão de molho esperando ir para a panela quando o dia raiasse, você acordou na madrugada para ir ao banheiro e levou um tombo. Um tombo bobo mas fraturou o colo do fêmur e foi parar no hospital. Almoço cancelado e, como nós havíamos combinado meses atrás, era hora de voltar a falar sobre a morte.
Fui vê-la no hospital e sem qualquer fé você percebeu a força da palavra e do pensamento. A cirurgia foi um sucesso, mas você não quis fazer fisioterapia e escolheu ficar na cadeira de rodas vendo cada dia nascer e aguardando a partida, uma despedida em longos nove meses, uma gestação. Você ficou zangada, realmente de mal com a vida. Impaciente, melancólica e nenhum dos tantos santos e anjos no seu altar podiam lhe dar algum alento, pois você não acreditava. Você tinha medo de morrer, enfrentar o desconhecido e para quem sempre foi muito materialista foram dias muito tormentosos. Tempos em casa, outros no hospital. Pouco antes do Natal saí da Bahia e fui ao Rio só para vê-la na UTI. Uma despedida. Você não falava, mas percebeu que eu ali estava… Fiz uma prece, agradeci pela minha vida e entreguei você à Deus. Voltei para casa achando que era o final… Mas você resistiu mais um mês, de novo fui ao seu encontro e então você conseguiu ver seus quatro filhos reunidos ao redor do seu leito. Não falou, mas deixou uma lágrima correr. Apenas uma. Era a derradeira. No dia seguinte levamos seu corpo à morada final.
Estou contando tudo isso mãezinha, para confessar que quando me lembro de você, aumenta ainda mais a minha certeza na força das palavras e dos pensamentos. “Nós somos o que pensamos”, disse Buda, e todo dia penso em como sou feliz, saudável e grata aos meus antepassados. A sua pouca fé permitiu que nascesse uma fé enorme dentro de mim e sou imensamente agradecida…Mais do que a vida, você, através de um jeito truncado, me fez entender a morte… Fique bem, aonde você estiver… Um beijo da sua filha Léa
Lindo!
Lindíssimo relato, querida… A minha história é semelhante no que toca a fé.