Outono

Na madrugada de amanhã começa o outono. Hoje é o dia de São José e na Bahia o verão continua como se a vida fosse sempre um eterno sol, brisa, mar e noites estreladas… As amendoeiras não seguem o outono, trocam as folhas quando bem entendem. Mas o outono deixou marcas em mim… O primeiro que vi na sua essência foi em Maplewood, um distrito de New Jersey, onde morei por um curto e inesquecível tempo em uma casa no estilo dos subúrbios americanos como se vê nos filmes da “sessão da tarde”. na Oakland Road. Éramos 3 adultos, 2 crianças e o sonho de fazer uma revista para os brasilianistas que tinham aos montes nos anos 80. O sonho não era meu, entrei no projeto dos amigos que não aconteceu. Para continuar por mais tempo na América fui trabalhar numa agencia de turismo na rua 47, esquina com a 5ª avenida, em Manhattan, mais de hora e meia de viagem. Caminhava em torno de 20 minutos até a estação de trem, ruas lindas, arborizadas, passava por um parque e ia apreciando as árvores mudando de cor pensando na vida que mudara de rumo. De trem seguia para Hoboken, fazia o traslado para o Path que atravessa as águas do rio Hudson e me levava até Manhattan onde um metrô me deixava próximo ao escritório. Pode parecer dureza, mas era muito divertido este novo mundo “9 to 5” no “american way of life”. Assim era de 2ª a 6ª e no sábado havia um turbilhão de coisas para fazer como retirar as folhas do jardim, pois no fim de semana que não fizemos, quase fomos multados… A casa da Oakland Road durou exatamente um outono. A amiga voltou para o Rio, eu cansei da longa distância para o trabalho e mudei para Larchmont, uma vila no Condado de Westchester, Nova York, um encantamento:  o apartamento estava há duas quadras da estação e em 32 minutos, num único trem, chegava na Grand Central, no coração de NYC, bem perto do escritório. Vi todas as estações de forma intensa nestes anos na América, mas a melhor de todas foi um outono em Boston quando visitei um amigo que estudava em Harward. Andei nos parques, sobrevoei a cidade de helicóptero e vi o espetáculo de folhas coloridas, variando do amarelo e marrom, passando pelo vermelho e laranja. Fecho os olhos e ainda tenho essas imagens, como se todos os outonos continuassem em mim, eternizados na folha de Oak colhida do meu jardim, guardada num livro muito especial, que me acompanha na cabeceira.  

Em referencia a árvore Oak, o carvalho em português, é forte e poderosa. Possui uma copa frondosa, não se deixa dobrar ao vento forte. É usada na composição do floral Oak do Dr. Bach e atua nos sentimentos de desânimo e desespero. Segundo Dr. Bach “é para aqueles que se esforçam e lutam para melhorar, tanto no que se refere à vida diária quanto aos assuntos profissionais. Continuam tentando uma coisa depois da outra, mesmo sem esperança.”

Uma folha de oak não entrou em minha vida por acaso… E quando me sinto frágil abro o livro e converso com ela…

Sullivan & Massadas

Foram várias as citações nas redes sociais de amigos, matérias em sites e revistas, comentando sobre a série e mergulhei nos 5 capítulos de “Sullivan & Massadas – Retratos e Canções” no Globoplay. Uma viagem no túnel do tempo, somos da mesma geração, e aquela música romântica que eles compuseram em profusão nos anos 80, mesmo considerada “brega” por alguns puristas da MPB, fez parte da minha playlist. Voltei ao Canecão nos anos 80 e vi a casa lotada ao ritmo de “Whisky a Go Go”. Lembrei da dificuldade em conseguir espaço na imprensa para divulgar o Roupa Nova, mas bastava colocar o nome no grande outdoor na porta da casa de shows em Botafogo que os ingressos esgotavam.

Assistir séries documentais é um convite para relembrar momentos que estão escondidos em alguma gavetinha da memória, e me deparei com a citação do Lincoln Olivetti que trouxe junto Vanusa do jeito que a conheci em 1973. Ela tinha acabado de gravar “O Mago de Pornois”, uma música infantil do Paulo Massadas lançada no Fantástico. Alguns anos depois estive mais próxima do Lincoln quando retornou ao Brasil depois de um tempo nos Estados Unidos e participou ativamente do disco “Vanusa 30 anos”, mas aí já é outra história…

Voltando à importância de Sullivan e Massadas, o jornalista Sérgio Martins coloca muito bem o que representaram na década de 80, lembra o movimento dos “falsos gringos”, cantores brasileiros que faziam sucesso cantando em inglês como era o caso do próprio Michael Sullivan. Outro momento delicioso é a sequência de clips, trechos de novelas com as dezenas de trilhas sonoras e um filme vai passando na cabeça de quem viveu aquele tempo. Algumas vezes dei um stop no vídeo para repensar aonde eu estava naquele momento…

A forma como o diretor André Barcinski conta esta história, utilizando alguns artistas que não são desse tempo, como por exemplo Zeca Baleiro e Carlinhos Brown, atesta a atualidade das músicas que podem ser interpretadas em diversos estilos como mostra o sambista Ferrugem com uma versão de “Talismã”, sucesso dos sertanejos “Leandro e Leonardo”.  E é claro que lá também estão os depoimentos de muitos dos que venderam milhares de discos com suas obras, como Gal Costa, Alcione, Angélica, Roberto Carlos, Xuxa, Serginho do Roupa Nova, entre outros tantos… A participação do Pedro Bial em entrevistas pontuais, e dos homens do disco e da TV como Edison Coelho e o Boni (José Bonifácio de Oliveira Sobrinho), atestam a importância da dupla. No último episódio, Massadas define de forma clara o porquê do sucesso: “a nossa música penetrou na alma, nós geramos memória”… Simples assim… Vale viajar nesses Retratos e Canções…

Léa e João

Quando a moça do cartório com um papel na mão se dirigiu a mim e perguntou Léa e João, soou estranho. Saí do cartório com a cópia da certidão de casamento com a averbação da separação consensual necessária para a 2ª via do RG, pensando que se fôssemos apenas Léa e João poderíamos estar casados até hoje. Mas não tinha como ser assim, a começar pela forma como nos conhecemos. Em 1976 eu estava morando em São Paulo e o vi entrar de braços dados com uma atriz no teatro onde haveria a entrega do prêmio APCA. Não sei por que falei para Maria Helena Dutra, a jornalista amiga que estava ao meu lado: vou casar com ele. Naquela noite não cheguei perto, voltei para casa pensando no ímpeto das palavras que fugiram pela boca sem imaginar o poder que teriam. Nunca tinha ouvido a sua voz, só sabia que era um diretor de novelas. Alguns meses depois, no dia 23 de outubro, morando de volta no Rio de Janeiro, fui convidada com outros tantos jornalistas e artistas para assistir a um show da Angela Maria com Cauby Peixoto, e ele fazia parte do grupo. Fomos apresentados rapidamente e fez um comentário que achei muito pretencioso. Saí do show e fui com amigos para o “706”, no Leblon, o piano bar da moda, onde logo depois ele chegou. Bastou um olhar, o convite “quer dançar” e tudo começou ao som de “Poxa”, um dos mais belos sambas da época. Namoramos bastante, alguns anos depois nos casamos apaixonadamente, mas na verdade, nunca fomos apenas nossos prenomes. Tínhamos história, cargos, funções, responsabilidades, num mundo de aparências e pouca essência. Eu era Léa Penteado, ele Régis Cardoso, primeiro nome, João. Por mais tentativas que fizéssemos para nos manter juntos, pois a química e a paixão era intensa, sempre aparecia algum impedimento. Ciúmes de um lado, tentações do outro e, mesmo quando depois de separados, tentamos reconstruir o amor, não deu mais match. E de tudo o que ficou, além das boas memórias, um documento me acompanhará aonde ali somos Léa e João.

7.5

Houve um tempo em que 3 de janeiro era dia de festa na redação do Segundo Caderno do jornal O Globo com quatro capricornianos aniversariando: Anna Maria Ramalho, Elda Priami, Paulo Alberto Monteiro de Barros (Artur da Távola) e eu.  Em muitos 3 de janeiro comemorei com uma amiga da mesma data, Ângela, sendo que um foi muito especial, quando nos reunimos em minha casa com nossos ilustres maridos. Ela com Gonzaguinha, eu com Regis Cardoso… Apesar do dia do meu nascimento ser logo depois do réveillon, quando muitos ainda estão de ressaca e entrando na dieta, não trocaria ele por qualquer outros 364 do ano. Adoro ser uma capricorniana de boa cepa, com ascendente leão e lua em peixes.

Este ano homenageio Ângela e Anna, amigas confidentes.  Ângela desde os 15 anos e Anna conheci aos 22. Ângela foi a amiga da adolescência, com quem me fechava no quarto (na casa dela ou na minha) para elucubrarmos como seria um grande amor, de onde viria e como chegaria. Foi numa destas conversas que confidenciou estar apaixonada por aquele que viria seu grande companheiro e comporia diversas obras marcantes para a música brasileira, muitas tendo a amada como inspiração. Com Anna ainda haviam amores, alguns desfeitos, outros recompostos, os filhos pequenos, o futuro profissional e sempre muitos planos maravilhosos que eu lia nas cartas de tarô.

Não tenho como reclamar da falta de amigas, foram muitas chegando ao longo da vida, algumas ficaram outras são vagas lembranças, mas estas duas queridas no dia 3 de janeiro sempre me fazem muita falta. Penso o que falaríamos nestes tempos em que estamos setentonas.  Certamente, como sempre acontecia, estaríamos dando boas risadas de nossas mazelas… Creio que foi com elas que aprendi a gostar mais de mim e rir até dos descaminhos…E vou brindar Joca e Loura, assim as chamava… Que estejam na luz e na paz…

Reflexões de 2023

Recentemente li sobre escrever uma retrospectiva pessoal no fim do ano deixando canais limpos para 2024. Não creio que os finais de ano sejam conclusivos, os ciclos não se fecham enquanto estamos vivos, são apenas dias que entram e saem num calendário. Neste período desfilam as estações do ano e alguns nem notam, só tiram e colocam os casacos dos armários. Como nasci no 3º dia do novo ano, o meu ciclo inicia junto, e sempre tenho uma enorme disposição com a nova idade.
2023 começou estranho. Em março fui surpreendida com o covid e em abril, o que jamais imaginei aconteceu, retirei um órgão. A vesícula se foi, fiquei triste, gostava dela. Recomposta dos sustos tive o prazer de colocar o ponto final num livro que estava escrevendo há 18 meses (publicação em breve). Ufa! Também aprendi muito quando, a convite do Jan, topei rejuvenescer o http://www.santoandre-bahia.com criado em 2006. Fizemos um trabalho lindo com a Kris, um orgulho contribuir para ver a região bem promovida e ainda encaramos juntos a realização do 6º Festival da Lagosta. Turma boa! Fiz curtas viagens, reencontrei amigos, trabalhei com o que gosto nas relações com a imprensa, algumas vezes administrando crises, buscando saídas, colaborando para um final feliz. Nos últimos seis meses acompanho o envelhecimento da Akira, a pastora canadense entrando nos 13 anos. Cardíaca, aos poucos vai perdendo os sentidos e com a idade se entregou aos afagos o que jamais permitiu.
Li em algum lugar e colei no mural a reflexão que me foi útil para tentar entender o que tenho visto por aí: “as pessoas não se unem mais para um objetivo em comum, mas para um inimigo em comum. O opositor se nutre do seu sucesso. Os que não tem sucesso se unem para ser contra quem tem. Na mesma proporção que crescem quem é a favor de você, crescem quem é contra. Mas o “a favor” é maior. ” Como a frase em para-choque de caminhão “A inveja é uma merda” e, por mais que o homem crie a inteligência artificial, descubra a cura de males, dê piruetas no espaço e tente se superar, o 3º pecado capital continuará existindo. Como diz o provérbio árabe “os cães ladram e a caravana passa”. Pense nisso ao longo de 2024, feliz novo ano…

21 de dezembro

Querido Victor, sempre acordo nesse data pensando por que estou aqui? Não pense que eu queria ir com você, o tanto que tinha (e tenho) para fazer são a prova de que meu tempo ainda é longo… Mas me pergunto por que fiquei em sua casa, no povoado que você escolheu viver, construindo uma historia que nada tinha a ver com a minha… A lógica não explica… Fui deixando os dias, os meses, os anos passarem e confesso que vivendo muito bem, às vezes não acreditando em tanta mudança de rumo…. Fui ajeitando o que eu era e o que me tornei… Aceitando e agradecendo o que vem… Desci do salto para a havaiana, literalmente… E sou grata sim, não sei se estivesse no caminho anterior teria aprendido tanto apenas olhando o entorno e percebendo que nada é perene, nem a beleza do hibisco. Não é fácil, ninguém disse que seria, mas os momentos prazerosos são muito maiores… E para culminar o seu dia abri finalmente a caixa de fotos que eram da mamãe e encontrei vários momentos seus que compartilho com a família e amigos que o conheceram tão bem, e outros que só sabem de você través das historias que gosto de contar….
Até sempre…

Salve Santa Cruz Cabrália

Foto de 1995 – a placa ainda está no lugar

Hoje Santa Cruz Cabrália completa 190 anos de emancipação política. Em algumas semanas completo 19 anos nessa cidade. Uma mudança radical. De família paranaense, criada entre São Paulo e Rio, o que me moveu para a Bahia foi o afeto ao irmão que escolheu Vila de Santo Andre para construir uma pousada e partiu cedo. Talvez a medalha de Nossa Senhora da Conceição que recebi ao ser batizada era um aviso, afinal é a santa padroeira da cidade. Mas nesses anos felizes, me tornei Cabraliense com título de cidadã, fui secretária em duas gestões, conheci a cidade e meu amor aumentou, sobretudo pela orla norte, onde estão os povoados de Santo Andre, Santo Antonio e Guaiú. A semana que passou conversei com o prefeito Agnelo Santos. Aos 8 anos quando meu pai me levou num comício aprendi que políticos são pessoas eleitas e pagas pelo povo para cuidarem de um lugar por um período. Ao longo da vida estive com muitos, de presidentes a prefeitos, com quem converso respeitosamente. E foi levando uma pauta com sugestões, reclamações e questionamentos que fui ao encontro.  Não represento qualquer associação, vou como cidadã que, independente do político que está no poder, quer a sua cidade bonita e com os serviços básicos atendidos. Podia estar só trabalhando online para grandes centros, nas horas de lazer ir à praia, assistir séries, ler um livro deitada na rede, mas não consigo ver o entorno e reclamar nas redes sociais. A pauta estava focada em melhorias para a região e, exceto os buracos nas ruas e a falta de luz nos postes, nada interfere na minha vida pessoal, mas no todo.  Um diálogo onde ouvi sobre as dificuldades de ser prefeito, cicatrizes das chuvas de abril, projetos para realizar faltando 18 meses para fim do mandato, e pedi pelo tratamento d´água, o transporte coletivo, a melhoria e limpeza das ruas, quebra-molas, cuidar da beira do rio, afinal um lugarejo tão lindo e turístico precisa de atenção. Espero no ano que vem escrever  “Parabéns Cabrália, obrigada Agnelo”.

Em novo shape

Tenho pensado que dentro de mim existe um universo pouco conhecido. Não é sobre sentimentos, é bem mais concreto: o corpo que habita em mim. Seus órgãos, inter-relações, processos, como respondem aos efeitos externos, dos alimentos aos pensamentos.  As reflexões chegaram junto a uma dor profunda que, até a causa ser debelada, passaram 45 dias. Deitada na mesa de cirurgia olhando as luzes no teto, às 7h30 a anestesista feliz cantarolava “Bom dia… O Sol já nasceu lá na fazendinha” enquanto acertava a veia e me dava algo para entrar em sono profundo, quando voltei eu já não era mais a mesma.

Com “zero” de importância ao longo da vida, a vesícula se tornara protagonista nos últimos tempos. A culpa das dores eram as tantas pedras que apareceram numa tomografia sem que nunca tenha percebido a sua chegada. Como nasceram, desenvolveram e tomaram posse sem aviso prévio? Essa pergunta me acompanhou e ainda me intriga.

Quando voltei da anestesia a surpresa: saíram as pedras, e também a vesícula. E assim tive que me aceitar faltando um pedaço, lastimar a perda e exercitar o desapego. Foram apenas alguns furinhos na barriga, como o combinado mas, psicologicamente, São Sebastião perdoe a comparação, recebi como flechadas. Apesar dos exercícios de desapego e de tantas pessoas dizerem que a vesícula não serve para nada, eu ressinto. Nem tive tempo de conhecer, ouvir suas necessidades, ser cuidadosa. Só me resta prestar atenção nos outros órgãos, se fosse possível adoraria virar do avesso e construir uma relação mais amorosa. Agora, no modelo “sem vesícula”, vida que segue com agradecimentos ao Dr. Josdanei Carneiro Silva, sua equipe e atendimento do Hospital Neuroccor, em Porto Seguro, as preces e boas vibrações da família e amigos distantes, a querida Ju Braga que veio me acompanhar, a presença das amigas “baianas” Ana Nunes Bacana, Carla Mott Ancona, Mikie Iwakiri, Patricia Martins, e a nutricionista vegana Carla Figueiredo que tem me alimentado desde que tudo isso começou…

O REI E EU

Quando a câmera deu o close na mão do Rei Charles no momento em que tocava o anel real, percebi que tínhamos algo em comum: um anel no dedo mindinho. O dele, tem 175 anos, foi presente da mãe, traz o brasão como Príncipe de Gales, a frase “’ich dien’, que significa “eu sirvo” e era um lembrete de que seria o primeiro na sucessão da coroa britânica. O meu foi comprado num momento em que a vida recomeçava e me dizia “eu posso”.

Quando fui morar em Nova York, em tempos de vacas muito magras, num início de dezembro, inverno chegando, vendi todas as joias para comprar uma árvore de Natal, botas e casacos para enfrentar a neve e um Atari para o Bernardo. Andei, de loja em loja, na rua 47 em Manhattan, conhecida como Diamond Street, para ver quem pagava melhor. Em cada uma abria a bolsinha de joias que eram examinadas e é claro que o valor oferecido era muito menor do que o real. Não questionei o valor afetivo, as situações em que comprei e ganhei cada uma, mas era o precisava naquele momento. Mas era o precisava naquele momento. Foram anéis ficaram os dedos.

Quando voltei ao Brasil e em pouco mais de dois anos fui me tornando uma prospera empresária, se é que se podia dizer isso de um escritório inovador de assessoria de imprensa, comecei a me presentear com algumas joias, compradas a prestação.  E este anel, que desde então não saiu da minha mão esquerda, me lembra exatamente isso “eu posso”. 

Vida longa ao Rei ! Vida longa às mulheres que acreditam que podem recomeçar sempre….    

Inesquecível

Foto @mauro.oferreira

Quando acabei de escrever sobre as 5 mulheres que partiram em junho, sem dar tempo de esfriar o teclado chegou a notícia de mais uma, esta conheci quando vim morar na Bahia há 18 anos. “Dona” Anna Mariani, assim conhecida em Vila de Santo André, mesmo que alguns a tenham visto raras vezes, interferiu discretamente e de forma determinante na vida da comunidade por quase duas décadas. Talvez muitos não soubessem que era conhecida nacional e internacionalmente pelas fotografias de fachadas e detalhes da arquitetura de habitações populares, que realizou desde 1976 em muitas expedições pelo Nordeste. Percorreu centenas de povoados para fazer milhares de imagens que tinham em comum: fachadas pintadas a cal pigmentada, rematadas em cima por platibanda (uma barra enfeitada, escondendo o telhado). Fotografou todas de forma idêntica, bem de frente, na mesma escala, sem destaques nem comentários, só local e data. Quando estava em meio a esse trabalho, teve um convite para expor na Bienal de São Paulo de 1987. Saiu de lá com propostas de exposição mundo afora, começando pelo Centro Pompidou, em Paris. Nesta época seu acervo já acumulava mais de 2 mil fotografias que foram publicadas em dois livros e desde o início deste ano fazem parte do Instituto Moreira Salles. 

Ela pode não ter fotografado fachadas de Santo André, mas deixou um registro ainda maior em centenas de crianças e adolescentes que passaram pelas instituições que apoiou de forma determinante. Desde a segunda parte dos anos 90, quando construiu uma casa à beira mar no então povoado de Santo André antes que o mesmo se tornasse um destino descolado de veraneio, olhou para a sua gente de forma especial. Em 2005 começou a colaborar com a Escolinha Maria Marta que existia desde quando aqui chegou. Primeiro financiou uma professora e, com o passar do tempo, se tornou a grande madrinha da Instituição que recebe em torno de 50 crianças entre 2 e 5 anos, do povoado e seus arredores. Nada mais delicioso do que ver as crianças chegando à escolinha que tem uma excelente base pedagógica e muito colaborou para a formação de uma geração. 

Como Conselheira e membro fundadora do Neojiba (Núcleo Estaduais de Orquestras Juvenis e Infantis da Bahia), em 2009 aproximou o IASA (Instituto Amigos de Santo André) que já oferecia educação musical à comunidade, para que se tornasse parceiro institucional desta escola que tem núcleos espalhados por toda a Bahia. O Neojibá, que tem como objetivo promover o desenvolvimento e a integração social prioritariamente de crianças, adolescentes e jovens em situações de vulnerabilidade por meio do ensino e da prática musical coletivos e de novas bases, deu ao IASA uma grande oportunidade. Quer recebendo “master classes” com músicos muitas vezes internacionais, quer permitindo aos seus alunos vivenciarem uma temporada de estudos em Salvador, ou trocando experiências com outras instituições na Bahia. Hoje, alguns alunos da bandinha do IASA se tornaram professores e monitores de música, passando o conhecimento para outras crianças e jovens da comunidade… Um ciclo feliz e renovável…

Tive oportunidade de conversar algumas vezes com Anna Mariani, tanto em encontros inesperados nas caminhadas na praia, como em sua casa… Eu já sabia um pouco sobre sua trajetória, mas em 2009 quando assisti ao show de Maria Bethânia “Amor, Festa, Devoção” e no segundo ato o cenário descia adornado com uma série de quadros com retratos de fachadas de casas, fiquei ainda mais impactada com a obra da “vizinha”.  Em 2012 assisti ao seu lado, num espaço aberto na vila, uma apresentação dos alunos no IASA cujo tema era o Nordeste. Cenários e palcos totalmente diferentes, mas aquela senhora sorridente de cabelos brancos admirava a apresentação das crianças vestidas de cangaceiros e índios de forma encantadora. Tudo muito singelo. Jamais esqueci o seu olhar embevecido como se estivesse assistindo a apresentação de uma sinfônica no mais renomado palco do mundo… Ela sabia o quanto a música e a educação transformava vidas e fez a sua parte em nossa comunidade… 

Anna Mariani faleceu de causas naturais na sua residência em São Paulo aos 87 anos no dia 22 de junho.  Meus sentimentos à família e gratidão por toda a amizade à nossa vila. Descanse em paz. 

Algumas fotos de Anna Mariani