Arquivo da categoria: terceira idade

O REI E EU

Quando a câmera deu o close na mão do Rei Charles no momento em que tocava o anel real, percebi que tínhamos algo em comum: um anel no dedo mindinho. O dele, tem 175 anos, foi presente da mãe, traz o brasão como Príncipe de Gales, a frase “’ich dien’, que significa “eu sirvo” e era um lembrete de que seria o primeiro na sucessão da coroa britânica. O meu foi comprado num momento em que a vida recomeçava e me dizia “eu posso”.

Quando fui morar em Nova York, em tempos de vacas muito magras, num início de dezembro, inverno chegando, vendi todas as joias para comprar uma árvore de Natal, botas e casacos para enfrentar a neve e um Atari para o Bernardo. Andei, de loja em loja, na rua 47 em Manhattan, conhecida como Diamond Street, para ver quem pagava melhor. Em cada uma abria a bolsinha de joias que eram examinadas e é claro que o valor oferecido era muito menor do que o real. Não questionei o valor afetivo, as situações em que comprei e ganhei cada uma, mas era o precisava naquele momento. Mas era o precisava naquele momento. Foram anéis ficaram os dedos.

Quando voltei ao Brasil e em pouco mais de dois anos fui me tornando uma prospera empresária, se é que se podia dizer isso de um escritório inovador de assessoria de imprensa, comecei a me presentear com algumas joias, compradas a prestação.  E este anel, que desde então não saiu da minha mão esquerda, me lembra exatamente isso “eu posso”. 

Vida longa ao Rei ! Vida longa às mulheres que acreditam que podem recomeçar sempre….    

Memórias de mãe

Tentando montar um quebra cabeça com datas e viagens, fui buscar informações no blogspot onde fiz anotações durante 2 anos até migrar para o wordpress e tive surpresas ao reencontrar registros de momentos tão significativos. Entre 2008 e 2009 vivi na ponte aérea Bahia – SP, onde tive grandes aprendizados, muitas reflexões e, o mais comovente foi encontrar os relatos dos últimos encontros com minha mãe. Reuniu todos neste post… Maio era aniversário dela, mês da mães.

Em 05 dezembro de 2008, quando saí de São Paulo para a Bahia aonde passaria as festas de fim de ano parei no Rio para ver mamãe. O texto abaixo é deste encontro, publiquei em maio de 2009.

Encontro mamãe sentadinha na cadeira de lona preta na sala de televisão reclamando do Natal que se aproxima. Minha irmã Déa no sofá, eu puxo um banquinho a seus pés para ouvir as lamúrias sobre a festa que se prenuncia. Papai gostava de Natal e festas, mamãe fazia a sua vontade. Se dependesse dela nenhuma palha se moveria no presépio com figuras antigas de cerâmica que todo ano montava embaixo da árvore prata com bolas azuis. Nada de presentes, comilanças, nem o desafinado coral familiar puxado por papai cantando Noite Feliz antes da ceia. Mas na hora da festa ela parecia feliz. Nunca soube se realmente era. Mas naquela tarde de novembro enquanto falávamos do Natal ela disse num tom muito familiar que não queria festa, estava velha e cansada. Aleguei que a festa poderia ser suspensa, mas com um jeito de olhar e falar que conhecíamos tão bem, disse que não podia contrariar o desejo do Alceu. Não mais o Alceu marido, mas agora o Alceu Filho, ” o meu tudo” como gostava de afirmar. Sugeri que ficasse quietinha no quarto enquanto a festa durasse. No máximo 4 horas e tudo teria acabado, e ela disse que também não podia. E foi diante deste dilema que também com seu jeito tão particular levantou os braços para o alto e disse: “mas Deus vai me ajudar, eu vou morrer antes do Natal e não vai ter festa!

Até agora nem sei como num impulso retruquei:

Ora mamãe, quanta pretensão achar que só por que a senhora vai morrer não vai ter Natal. O Natal acontece com ou sem a senhora.

Nem ela nem a Déa imaginavam este meu ataque. Falta de educação contestar a mãe, mas quase aos 60 me achava no direito.

Ela me encarou bem com seus olhos pequenos e determinou:

Então eu vou morrer no início de janeiro. Começava assim o mais louco diálogo de minha vida.

Não vai não mamãe, em janeiro eu faço 60 anos e como vai estragar minha festa?

Então eu morro em fevereiro.

Ora mamãe, fevereiro também não dá. Vou estar trabalhando no navio do Roberto e ja imaginou ter que parar o navio para vir ao seu enterro? Vamos combinar o seguinte: a senhora fica bem boazinha até maio, seu aniversário de 90 anos, depois disso a gente conversa de novo.

Mamãe aceitou a proposta e ficou boazinha até o dia do seu aniversário. Como sempre não queria festa, com insistentes apelos acabou concordando em fazer um almoço para reunir os filhos e netos. Mas na madrugada do dia da festa caiu no caminho para o banheiro. A osteoporose silenciosa quebrou a cabeça do fêmur. Foi para o hospital, dias depois a cirurgia para colocação de uma prótese e mamãe não mais se levantou. Foi se definhando e acho que está em vias de realizar seu desejo com um ano de atraso. Este ano não vai ter Natal. Ao menos na minha família.

Quarta-Feira, 20 de Maio de 2009

Conversa com mamãe

Mamãe não chora… Vamos falar das coisas boas da vida… Lembra da viagem à Disney quando entramos num trenzinho pensando que era só um passeio numa antiga mina de ouro do velho oeste e quando vimos estávamos no alto de uma montanha russa? Lembra o quanto gritamos e rimos depois com essa história? Sorri um pouco, mamãe, não chora… Lembra do cachorro quente que comíamos nas esquinas de Nova York e você dizia que era o melhor do mundo? E a neve que vimos em Mont Vernon, aquele campo enorme, todo branquinho e nós, feito crianças, tiramos fotos pra mostrar no Brasil… Mamãe, quanta vida pra recordar… 90 anos de construção de alegrias… Que graça ter só vivido bons momentos…Quantos irmãos, parentes e amigos… Que maridão você teve por quase 60 anos que lhe cobriu de dengos, e de sapatos e carinhos…Não faltaram viagens, passeios, nem pêssegos escondidos no armário só para você comer … Bombons nas gavetas, roupa nova no cabide… Nada faltou mamãe, não chora, a nossa vida foi muito feliz…

Quinta-Feira, 28 de Maio de 2009

Mamãe…

Mamãe, a vida é transformação, é aprendizado…. Não mamãe, impossível que nada mais exista quando a gente morre, quando este coração para de bater, quando a respiração acaba…

Ufa! Mamãe, respira comigo, presta atenção e me diz: você acha que somos como pequenas formiguinhas que acabamos como se a unha do polegar nos espremesse em cima da mesa, assim como você está fazendo? Mamãe, a vida não pode ser só isso… E todo esse equipamento que temos, esta sofisticação de neurônios e sistemas que nenhuma tecnologia conseguiu clonar e nos faz ser matéria vai acabar assim, espremido entre a unha e a madeira da mesa da cozinha, como você me mostra agora?

Ah! mamãe, você nunca me falou de morte, nunca me falou de outras vidas, nem mesmo apenas desta vida… Mas eu andei olhando pelo mundo e aprendi, li e ouvi que somos muito mais do que isto.. Somos elementos em movimento como a vegetação…. Você compreende mamãe que as folhas nascem, caem se transformam em sementes, também em adubo e voltam outras árvores e flores? Lembra mamãe…. Nós também somos assim… Escuta mamãe, sem medo, vivemos em movimento…. Não dói, é a vida mamãe…

Quarta-Feira, 17 de Junho de 2009

Mamãe você está linda, sentada sozinha na cama! Que sucesso heim, mamãe ? Cada dia melhor… Não faz esta carinha de pouco caso, você está dando a volta na vida… Como passar pelo Rio e não vir te ver nem que seja um pouquinho… Mamãe, acho que aos 90 você está começando a gostar dessa briga pela vida… Vamos firme mamãe, não tenha pressa de sair correndo pela casa com o andador, nem comprar uma cadeira de rodas… Qualquer dia você vai estar novamente andando sozinha… Esta mulheres da família Vianna tem estofo, são forte… Vovó chegou aos 97 mamãe, vamos lá…

Quarta-Feira, 23 de dezembro de 2009

Vi o dia nascer no aeroporto de Confins, vejo o dia acabar a caminho do aeroporto do Galeão. Um risco rosado no céu azul de verão avisto enquanto o carro vai pela Linha Vermelha e sinto o indefectível cheiro de enxofre, ou de podre, mas que tanto marcaram minha saídas e chegadas do Rio.

Não sei expressar como estou. Ou sou muito forte ou tão frágil que me escondo em um personagem. Talvez em algum momento eu desabe. Estou exausta. Sai de casa para pegar a balsa de 1 da manhã, um voô às 3h30 para BH, depois outro às 7h40 para o Rio e fiquei esperando com minha irmã até às 14hs para a visita na UTI e encontrar mamãe dormindo.

Não mamãe isso não. Acorde só um pouquinho para me ver. O corpo magrinho coberto por aventais. Onde estão as lindas camisolas que papai presenteava e sempre repetia a mesma piada: “pedi para a vendedora experimentar para ver se ficava bem”. Esse era o máximo de insinuação de sensualidade que ouvi em casa. E hoje mamãe está envolta em panos. Os braços presos a cama transpiram muito. Estranho, só os braços, como se um liquido em forma de suor fosse saindo do corpo apesar do frio do ar condicionado. As mãos estão inchadas de tantas picadas para injetar soro. Penalizada com a cena rezo em silêncio implorando para mamãe acordar. Ela não escuta. Insisto mais um pouco, agora chamando quase que em seu ouvido e aos poucos vai despertando. Vejo na máquina sob a cama que os números marcando o batimento cardíaco aumentam muito ao me ver. Desculpe interromper seu sono, mas filhos querem sempre atenção e eu não poderia voltar pra casa sem falar algumas coisas. Lucida presta atenção às graças que falo. Posso até ouvir sua voz dizendo ” uma palhaça” seguido de um risinho curto. Mamãe nunca foi de exteriorizar sentimentos. Continuo falando, meus irmãos falam também, fazem sinais e ela se mexe na cama querendo sentar. Ainda não dá mamãe. O enfermeiro avisa que o tempo da visita está acabando. Ainda faço uma prece em voz alta. Dou um beijo e ela balbucia: Deus te abençoe. Eu respondo: Deus te abençoe também, eu te amo.

Volto para casa e já não sei quando nos veremos de novo. Por enquanto mamãe ficamos combinado que vamos nos ver qualquer dia.

Domingo, 10 de Janeiro 2010

Nublou

60 dias sem chuva, quase 30 dias com mamãe vagando do quarto do hospital para UTI, o tempo nublou. Um verão de muito sol, mas dentro de mim nuvens negras e pesadas, prenúncio de tempestade. Total incoerência nestas férias entre desejos e realidades. Senhor seja feita a vossa vontade de sol ou de chuva. A natureza mostra que tudo se transforma e tem seu ciclo. Vou me ater a este pensamento e acreditar na plena transmutação.

Domingo, 17 de Janeiro de 2010

No leito do hospital, liberada da UTI há menos de 24hs, fraquinha, respirando com dificuldade ela percebe os 4 filhos reunidos a sua volta. Quero muito que tenha tido essa percepção, mesmo sem emitir um som diferenciado que não seja seus curtos gemidos, nem fazer um gesto com a mão caída sobre o colchão e inerte. Os meninos repetem o que os médicos falaram, as meninas rezam baixinho. Saem juntos os 4 irmãos para a pizza. Riem, conversam, declaram amor, lagrimas, discussão, briga, raivas escondidas, perdão, apaziguamentos. Cada um vai para seu canto sabendo de sua dor. Na madrugada o telefone toca e avisa: ela voltou para UTI. Há poucos minutos mais um telefonema: ela se foi.

Ficam só os 4 irmãos cada um com sua história. Descanse em paz.

Entre panos

Antes do mundo parar, ainda no verão, comprei tecidos para uma colcha de retalhos. Não sei onde estava com a cabeça para escolher estampas tão fora do padrão do que costumo utilizar. Gosto de cores solares, chitão, cara de Bahia, que misturo com bordados, aplicações, às vezes coloco uma renda e vou juntando sem o critério do patchwork, que acho lindo, mas por formar um desenho estático, repetitivo, comportado, foge da minha criatividade. Gosto de desestruturar, ir juntando os tecidos pensando em qual cama irá deitar… Geralmente enfeitam os chalés dos hóspedes e tenho uma amiga que passou uns dias aqui pensando na vida, criou uma relação de afeto com a colcha que tinha bordados e textos, que acabou levando. Gosto de trabalhar em tons, certa vez fiz só em azuis para presentear uma amiga nos 60 anos… Ou simplesmente vou juntando estampas para no final jogar num caldeirão de tintura e igualar num só tom. Se minha brincadeira de costurar anda neste caminho é possível imaginar o desapontamento quando percebi que os tecidos do verão eram caretas, um pouco infantis, listras e estampas miúdas que até pareciam camisas que usei nos tempos em que fui executiva. Diante dessa cena desativei temporariamente a produção.

Até que o mundo se fechou e no povoado onde vivo começamos uma campanha para levantar recursos, montar cestas básicas e doar para os trabalhadores desempregados e alguém teve o bom senso de perguntar: não vamos doar máscaras? Foi então que levantei a mão, retirei os tecidos guardados sem função e o que era colcha virou proteção em tempos de vírus. Parece que tinham sido comprados por encomenda e, com o auxílio luxuoso e totalmente voluntário do Pedro Paulista, que costura divinamente colchonetes para praia, ombrelones, almofadas, mosquiteiros, as máscaras estão ganhando as ruas. Ah! como eu adoraria estar fora do isolamento para ver pedaços do que seria uma colcha nos rostos do moradores. Por minha vez, continuo costurando máscaras, mas para alimentar a minha estrutura psíquica, faço com pedaços de pano que sobraram de colchas e assim, não caio na monotonia das estampas caretas…

Entre uma costura e outra, chego a delirar que seria muito legal depois que tudo terminar, recolher todas as máscaras e construir um enorme painel memória de um tempo triste que passou…

Um mergulho

Nunca amei tanto a Itália como no período da adolescência até a entrada da juventude, quando descobri a MPB. Antes dos 15 anos, na trilha sonora de qualquer bailinho, no top 10 a metade tinha as vozes de Sérgio Endrigo, Domenico Modugno, Gino Paoli, Pepino di Capri, Gianni Morandi, Nico Fidenco, Pino Donaggio, Gigliola Cinquetti … entre outros tantos. Como éramos apaixonados por estas vozes, assim como por Ray Conniff e Metais em Brasa… A cultura italiana ainda trazia filmes maravilhosos e, com a carteira do colégio completamente falsificada que o porteiro sabia que era fake mas fazia vista grossa, assisti filmes inesquecíveis como “O Belo Antonio”, “8 e ½”, “Rocco e seus irmãos”, “Matrimônio a Italiana”, “O Homem que não sabia amar” e incluindo nesta trilha o americano “Candelabro Italiano com a icônica canção “Al di la” interpretada por Emilio Pericoli …

Tudo isso tinha cheiro de amor… Havia alguma coisa diferente que mexia por dentro e depois vim saber que se chamava hormônio. Este elemento pulava nas espinhas, na secura da garanta quando aquele garoto vinha tirar para dançar e não sabia como começar a conversa, com a mão que suava e um rubor enchia o rosto ao mesmo tempo que o coração acelerava com o simples toque de uma mão masculina.  Era uma semana de espera, dias pensando no que vestir, o que falar, como andar, para pouco mais de 3 horas para se viver tão intensamente tudo o que não se sabia o que era…

Tudo isso veio à memória quando mergulhei hoje e senti a água muito salgada. Começou a cantar em mim “Sapore di Sale”, não sei qual conexão fez o meu cérebro, há quanto tempo não escuto esta música… Incrível este sentimento pois o mar de Sto André nem sempre é salgado, um rio desagua na vila, mas com a maré baixa, em plena lua cheia, parecia um tapete, tranquilo, sem ondas e veio “Sapore di Sale”. Voltei pra casa atrás de uma gravação da canção que não ouvia há décadas e encontrei no Youtube um vídeo do autor Gino Paoli aos 84 anos interpretando sua obra. Ah!  Gino, que bom saber que o tempo também passou para você e como está firme, seguro, pleno de sua arte nas imagens de 2016… Espero que o Covid-19 não tenho feito um estrago, que você esteja bem, cantarolando em alguma sacada na Italia, esperando tudo passar e voltar aos palcos. Você continua vivo para mim como também os bailinhos da Tijuca… Todas essas lembranças me enchem de amor… Acho que os hormônios continuam vivos…

Nunca assisti tantos filmes…

“Nada Ortodoxa”, atriz Shira Haas

Nunca assisti tantos filmes na minha vida…. Praticamente um por dia e sou muito grata à Netflix e aos amigos que mandaram dicas. O mais estranho é perceber a relação que estou desenvolvendo com os filmes… Claro que converso com cães, plantas, roupas… mas o filme continuar vivo é novidade. Eles terminam e eu continuo convivendo com os personagens, conversando, andando por cenários e imaginando o que estariam fazendo enclausurados em tempos de convid-1.

Hoje, por exemplo estou firme com a Esther, Esty, (Shira Haas) da série “Nada Ortodoxa”. Foram apenas 4 episódios, indicação do Beto Leal, amigo que mora em NYork e está recluso em Connecticut, que não sai de mim. Acredito que em outra encarnação fui judia e o Adolpho Bloch foi o primeiro a dizer “você não é goy, tem cara, nome e pensa igual a uma jewish woman”. Esta série retrata uma jovem judia moradora numa comunidade super ortodoxa no Brooklyn e me revelou tanto da cultura judaica que já ouvira e nunca tinha visto como a refeição no shabat, a escolha dos casamentos, a preparação das noivas… Junto com Esty voltei à Jerusalém e vi as mulheres andando nos shoppings sofisticados usando perucas, lenço na cabeça, saias longas puxando carrinhos de bebê e muitos filhos.

No fim de semana voltei à década de 50, viajei para o interior da Inglaterra e quem passou o domingo comigo foi Emily Mortimer, a personagem do filme “A Livraria”. O filme é de 2017, tem uma avaliação de apenas 2 estrelas num desses sites de crítica cinematográfica, mas foi uma excelente companhia. Estou até agora lembrando do livro Lolita, grande sucesso na livraria da forasteira Emily e no final surpreendente.

Já passei dias com “Madam C. J. Walker”, indicação do Bruno Astuto, a primeira mulher negra a ficar milionária. Não me conformo por não ter conhecido a sua história quando morei nos Estados Unidos. O mesmo sentimento tive ao assistir a série do Bhagwan Shree Rajneesh, Osho, afinal eu morava lá quando tudo aconteceu e me lembro vagamente de ouvir nos telejornais, nada tão impactante como o documentário. Graças a Deus não soube muito sobre o guru naquela época, pois aos 30 anos certamente ficaria tentada a conhecer a comunidade no Oregon.

Passei dias com a Yuma Takada, personagem vivida por Mei Kayama, no filme “37 Segundos” o primeiro da diretora japonesa Hikari. Não lembro quem me indicou, mas fiquei mobilizada com a delicadeza da história da cadeirante. No início o filme traz um certo incômodo, mas logo superado. Que lindo o desafio da desenhista, quanta sutileza em temas tão duros. Yuma foi comigo à praia, fiquei imaginando como se movimentaria na areia… Quem assistiu ao filme pode entender…

Alguém sugeriu assistir “O Cidadão Ilustre”, de 2017, e quanto me parece real toda a trajetória do personagem Daniel Mantovani (Oscar Martínez), um escritor argentino e vencedor do Prêmio Nobel, radicado há 40 anos na Europa, que volta ao povoado onde nasceu e que inspirou a maioria de seus livros, para receber o título de Cidadão Ilustre da cidade – um dos únicos prêmios que aceitou receber. Algumas vezes fiz matérias de artistas que ficaram famosos e voltavam à terra natal, confesso que vi cenas muito parecidas…Oscar Martinez, ou melhor, o escritor Daniel, também andou pela minha casa e acho que foi com ele que preparei o almoço segunda-feira.  

Ainda acompanhei a saga da espiã do Tanger na longa série de “Em Tempos de Costura”… Creio que foram uns três dias de idas e vindas com Sira Quiroga, seus amores e desafios entre Madri, Lisboa e Tetouan, a cidade hispano-mourisca no norte da África. Na série que traz fatos históricos da Guerra Civil Espanhola de 1936 os quatro personagens inspirados em fatos reais realmente vivenciaram aqueles momentos em suas vidas, a qual foi baseado em relatos de documentários e livros de biografia existentes, cujos não são famosos a nível internacional. Essa série é uma adaptação do livro de Maria Dueñas. Viajei nos tecidos e nas costuras, um assunto que adoro. Acho que foi isso que me fez abrir os armários e voltar a costurar as máscaras que já ganharam o mundo.

E assim, estou entre filmes, panelas onde acredito que os tantos programas de culinária que assisti – sua bênção Rita Lobo, sua bênção Claude Troisgros – começaram a fluir e estou cozinhando cada vez melhor. Assim como os filmes, cada dia uma descoberta. E agora preciso dar um tempo. Estou mergulhando no estudo de “SEO – Search engine optimizer”. Quanta coisa para conhecer sobre o mundo Google… Esta quarentena tem que se prolongar, não vai dar tempo para tanta coisa, ainda mais que acabo de ler que “Casa de Papel” estreia a 4ª. temporada no fim de semana…  Estarei totalmente recolhida…

Grão de areia

E então descobri que me colocaram no segmento “idosa” de uma forma totalmente pejorativa. Enquanto estava na terceira idade, na melhor idade, ou outros rótulos criados para mostrar a delícia de passar dos 60 (ou quiçá dos 70, 80…) havia um certo glamour… Mas de repente soltaram um vírus no planeta com endereço certo, como se fosse crime ter conquistado uma vida longa e saudável… O idoso penalizado, diminuído, como algo que pudesse ser descartado, jogado no lixo e aí me lembro das sábias palavras da Dercy Gonçalves inseridas no texto de um espetáculo que estreou ao completar 78 anos. Dercy falava magistralmente bem sobre a condição de se sentir olhada com desprezo por conta da idade, isto em 1985. E como resposta mostrava as pernas em vestidos curtos e respondia com inúmeros palavrões. Esta foi a sua arma…

Mas nos tempos de hoje, sem Dercy que viveu até os 101 anos para me defender, declaro em alto e bom tom que me recuso a acreditar que perdeu a graça o charme dos cabelos brancos, o prazer do conhecimento para ser compartilhado, a experiência como assunto na conversa entre amigos mais jovens, as descobertas que tenho com as situações mais simples que me deparo… Não estou no fim da vida, cada dia vou entendendo a minha missão no planeta.

Ontem fui dar um mergulho, não levei nem celular, óculos, chapéu, cadeira. Apenas um mergulho às 11 da manhã e fiquei encantada ao ver a praia completamente vazia. Nenhuma pegada na areia, nenhuma alma viva… Jamais vi cena assim num dia de sol neste horário, mesmo em períodos de baixa estação. Até os cães sumiram.  Mirei o infinito, mar calmo, céu azul, poucas nuvens, na sequencia fechei os olhos e fiz uma prece. Foi neste momento que me senti envolvida por uma energia tão intensa, tudo tão puro e vibrante na natureza, que aos poucos senti como se meu corpo diminuísse de tamanho, fui encolhendo em câmera lenta, vagarosamente, até me sentir menor que um grão de areia diante do gigantesco universo. Sem medo fiquei curtindo aquele momento único e especial. Um presente.

Somos exatamente isso, um grão e areia de passagem pelo planeta. Mas a vida não pode ser só isso, me colocar frente ao tiro certeiro de um vírus. Tomo todas as precauções, mas me recuso morrer na praia. Continuo na quarentena que, a bem da verdade, já estou há tanto tempo, e lastimo muito pouco.  Não posso abrir mão dos sonhos que tenho, vocês não imaginam o tamanho da minha lista de desejos. Ainda não acabei de descobrir metade de mim, estou disposta e aberta à tantas novidades e aprendizados que virão… Alto lá! Sem chances de me aceitar no rol dos que estão no fim da vida…

E hoje conversando por whatsaap com uma amiga que passa por um processo de saúde e o peso do vírus faz se sentir mais insegura, mesmo sendo uma mulher forte, com longa atividade política e pouca familiaridade com assuntos da espiritualidade, escreveu “acho que estamos chegando ao fim do poço, do túnel. Depois disso, é só luz”. É exatamente isso que acredito, estamos mudando a rota e este tempo é para pensar… Vamos tirar nossos sonhos do caderninho, marcar tempo para realizar, desacelerar do que não vale a pena, dar gás ao que é fraterno, amoroso, colaborativo… Acredito que ser menor que um grão de areia é um enorme exercício para os novos caminhos…

Em tempo : para quem quiser saber um pouco mais da minha história com Dercy Gonçalves, segue o que escrevi no livro “A Verdade É A Melhor Noticia”.

Com palavrões

Walter Lacet, um dos diretores artísticos do Canecão e diretor da TV Globo, telefonou contando que Dercy Gonçalves faria uma temporada na casa num horário alternativo às 7 da noite. Fez questão de explicar que ela não era uma pessoa de fácil acesso, para relevar qualquer mal-estar e que ao conhecê-la pessoalmente eu iria me apaixonar. Seguindo a recomendação, na hora marcada telefonei para a casa da Dercy com a minha mais tranquila e aveludada voz. A própria atendeu ao telefone de maneira brusca e assim que comecei a explicar a razão da chamada, da vontade de fazer um belo trabalho para dignificar e promover ainda mais a sua arte, ela interrompeu avisando que não daria entrevistas por ter nada a dizer, nem fotos para divulgar e quem quisesse saber alguma coisa que fosse assistir. Num tempo sem Google para a pesquisa, recorri aos arquivos da Biblioteca Nacional, fiz um release enxuto com pinceladas de sua trajetória enaltecendo os seus 78 anos! Era essa a idade da atriz com quem eu iria trabalhar, considerada irreverente e obscena por dizer palavrões no palco sem o menor pudor. E ainda por cima bem mal criada.

Lembro que na minha infância, uma vez por mês meus pais iam ao teatro e quando Dercy estava em cena com alguma comédia, era certa a presença deles, apesar do rubor de mamãe com os trechos mais picantes. Dercy era um mito, mas creio que não sabia disso. Até então nunca tinha se apresentado para uma plateia deste tamanho e num local com tantas referências importantes para o mundo dos espetáculos. A princípio o release caiu nas redações como pássaro sem ninho. Olhar enviesado dos editores que não sabiam aonde encaixar a informação. Não podia entrar na “retranca” teatro nem show. Era o que? Um espetáculo, dizia eu. Mas no fundo eu percebia que havia um sub texto que dizia “como no palco do Tom, do Vinicius, da Bethânia, do Caetano, do RPM vai se apresentar Dercy?”. Ela não era considerada nem atriz pela maioria da imprensa, mas uma velha vedete do teatro de revista.

Conheci Dercy um dia antes da estreia durante o ensaio. O espetáculo escrito por Mario Wilson tinha o ator Luiz Carlos como “escada” para suas piadas e também como partner num número de dança. Diante da forma seca como me recebeu eu poderia ter desistido, mas percebi que era gentil à sua maneira. Em pouco tempo nos tornamos grandes amigas. Dercy chegava ao Canecão antes das 5 da tarde. Era o hábito antigo de quem praticamente viveu nos bastidores dos circos e mambembeava pelo país. Usava seu camarim como casa. Na antessala aguardava o horário do espetáculo assistindo TV, comendo salgadinhos e bordando suas sapatilhas com pequenas lantejoulas, paetês e canutilhos e não usava óculos. Nos primeiros dias eu chegava cedo, bom estar ao lado de alguém com tanta história. Mas por alguma razão de trabalho, certo dia cheguei na hora do show e ela reclamou da minha ausência. Confesso que me senti valorizada pela companhia e durante toda a temporada eu levava algum bordado ou tricô, para ficarmos juntas. Às vezes ela conversava, contava altas historias, outras ficava em silencio e eu acompanhava seu humor.

O espetáculo se transformou num grande sucesso de público e um dos fatores que alavancou a procura de ingressos foram os comerciais e reportagens da TV Globo, pois na mídia impressa somente esparsas notícias. Nenhum perfil, nenhuma crítica, nenhum destaque. Ela estava fora do padrão de artista naqueles tempos, creio que sua genialidade sempre esteve fora de qualquer parâmetro.

Acontece que este suporte das chamadas para o show e do jornalismo da TV Globo acontecia em função da comediante ter sido contratada da emissora nos seus primórdios, que levantara a audiência com um programa popular e muito divertido. Boni, então todo poderoso diretor geral, não escondia a sua amizade e carinho pela mulher que tinha história, passado e respeito, por mais controverso que isso pudesse parecer. Sem crítica ou fotos nas colunas, bastava seu nome gigantesco na porta do Canecão para atrair um público de todas as idades. Assisti todos aos seus shows e sabia o espetáculo de cor. Tirei deste espetáculo um trecho que carrego como aprendizado de vida. Dercy dizia “Deus fez esta porra mui to bem feita. Deu um pacotinho de felicidade pra cada um, mas tem gente que não olha o seu saquinho, fica olhando o do vizinho e não consegue ser feliz”. Esta era Dercy. Soube cuidar bem do seu saquinho, viveu 101 anos.

Rosas e tomates

Quando começaram a dizer que eu deveria ficar em quarentena, respondi que assim já estou desde que escolhi morar longe dos grandes centros. Pouco mudou a rotina. Ida ao centro de Cabrália ou Porto Seguro para supermercados, banco, comércio, correio, há algum tempo restringi para uma vez por semana.  Muitas vezes chego a ficar 15 dias, resolvo na vizinhança sem atravessar a balsa… Diante do Covid-19 criamos um grupo entre amigas para compras solidárias e buscar correspondência no correio. Só vai à cidade quem realmente tem necessidade, e assim vamos nos “quarentenando”.

Solidão não me assusta pois entre as constatações destes últimos anos com uma vida mais quieta, mas não reclusa, estão a de que sempre soube brincar sozinha. Devido a diferença de idade entre os meus irmãos – o mais próximo 4 anos, o mais novo quase 9 – bonecas, panelinhas, costurinhas, revistinhas, fizeram parte de um mundo particular. Na infância eu vivia escondida embaixo da escada. Morávamos num sobrado no Brooklin (São Paulo) e junto da escada havia uma saleta onde ficava o telefone e um pequeno sofá. O meu paraíso ficava exatamente ali, embaixo dos degraus, um lugar só meu. Era um espaço reduzido onde eu cabia direitinho com brinquedos, pensamentos, viagens e sonhos. Uma vez por semana a Rosalina vinha com a vassoura e, apesar dos meus protestos, desmontava o reino geralmente no horário em que eu estava na escola. Quantas vezes esqueceram de mim ali quieta, brincando com as bonecas de papelão ou fazendo roupa para as bonecas de louça, montando casinhas com blocos de madeira, jogando cinco marias com saquinhos de arroz ou apenas olhando para o teto e contando os degraus. Não me lembro mais quantos eram, mas contava debaixo prá cima, de cima prá baixo, quase que num transe hipnótico até dormir… Acordava com o telefone tocando ou minha mãe chamando para tomar banho e jantar…

Hoje o meu “reino” é um pouco maior. Tem uma área de 2.130m2, me sinto acolhida como no tempo em que ficava embaixo da escada e tenho muito com o que brincar. Uma querida amiga passou uma semana comigo e atacou de “me ajuda decora” dando um up nos chalés. Trocamos luminárias, interruptores, até uma parede foi pintada…Também aproveitei a chuva e replantei a horta. Beterraba, cenoura, salsa, cebolinha, alface e rúcula estão por vir. Há algumas semanas plantei em um grande vaso uma muda de pequenas rosas e qual não foi a surpresa ao ver um mato surgir no entorno. Com o cheiro que vinha quando molhava descobri que cresciam tomateiros.  A terra é produzida no quintal através de compostagem e às vezes acontece…. Com isso, estou acompanhando um tomateiro em flor com uma rosa envergonhada embaixo dos longos galhos.

Cancelei o agendamento na Policia Federal para um novo passaporte, assim como o projeto de ir à Andorra visitar as amigas Nenô e Denise. Seguindo a sugestão de uma amiga médica vou suspender o Pilates até o final do mês. Alongamentos em casa na medida do possível, caminhar na praia e na rua que, dependendo do horário, não encontrarei uma viva alma.  Aproveitei e desmontei a lavandeira provocando um desapego nas roupas de cama e banho que estavam mais usadas. Também doei as primeiras colchas de retalho, estavam um pouco desbotadas, mas um amigo gostou tanto que levou uma. É sempre assim, o que não serve para um é ótimo para outros. Muitos tecidos me esperam para serem cortados e surgirão novas colchas para enfeitar os chalés redecorados. Mas antes tenho a encomenda de duas bonecas de pano, pedido de uma amiga que disse ter sonhado com elas… E tantos anos se passaram e continuo brincando de bonecas.

São João, acende a fogueira do meu coração

No final da rua da Margaridas, do lado esquerdo, antes de chegar no riacho, ficava a casa dos italianos Orabona. Nós morávamos no Brooklin, naquele tempo era um bairro distante do centro de São Paulo, onde ainda haviam chácaras, um rio aonde as crianças tomavam banho escondido dos pais, ruas sem calçamento, alguns sobradinhos, um colégio de freiras e outro dos padres, uma igreja a ser construída em mutirão, um pequeno comércio. Os italianos eram festeiros, assim como os espanhóis Alarcon que tinham o empório na esquina das Margaridas com Acácias.   

Eu esperava o ano todo pelas festas dos Orabona. Era tão bom quanto as férias no Rio. Nas semanas que antecediam a casa deles se transformava em atelier para construção de balões. Às vezes papai me levava prá ver aquele monte de papel de seda colorida que com recortes exatos e colagens magnificas com cola de farinha, se transformavam em peças únicas de uma beleza incrível. Tinham expertise em fazer a bucha e colocar de forma que subissem sem “lamber” (queimar), colorindo e iluminando o céu até se perderem no infinito. Na noite da festa me importava mais ficar olhando os balões no céu do que qualquer comilança… E a mesa era farta, mas eu só admirava sem preocupação com o meio ambiente ou o que a queda poderia provocar. Apenas sonhava em voar junto.   

Esta era a memória de São João até mudar para o Rio na adolescência e conhecer as enormes festas que aconteciam nas ruas da Tijuca. Cada dia uma rua enfeitada com bandeirinhas e bambu, quadrilha, barraquinhas, comilança com quentão, vestido estampado com enfeite de renda, chapéu de palha com flor. Uma agenda disputadíssima e eu nem olhava mais para o céu procurando balões, mas sim para os lados interessada nos rapazes…

São João sumiu e voltou quando eu tinha menos de 30 anos e passou a ser festejado em casa, aniversário do marido que também tinha o nome do padroeiro. Toda festa tinha um clima caipira, mesmo que discreto. Uma vez ousamos ao extremo e transformamos o quintal da casa dos meus pais em arraial com cenografia impecável, música ao vivo com um trio de zabumba, sanfona e triangulo, quentão, amendoim torrado, cachorro quente, milho, canjica, bolos… Festança para ninguém botar defeito. Da diretoria do Salgueiro aos atores do elenco da novela que ele dirigia !!

Acabou o casamento e São João também. Reencontrei o santo há 15 anos quando vim morar no Nordeste onde a festa é tão grande, como o fim de ano no Sul quando as famílias se reúnem, ou um thanksgiving na América. São muitos dias de celebração. Em Santa Cruz Cabrália é praticamente o mês inteiro. Tem festas no centro da cidade, nos bairros, nos distritos. Tem até um bairro com um Santo Antônio com mais de 14m de altura onde acontecem 13 dias de festas, com missas, bingos, shows, para a alegria do padre e do povo. Consta que em Vila de Santo André, antigamente a festa durava 3 noites e 3 dias de musica, brincadeiras e comilança. Este ano se repetem 3 noites com apresentação de quadrilhas, barraquinhas com quentão de jenipapo, amendoim cozido, curau, caldo de pinto, pipoca, bolo de milho. Forró tocando alto, criança correndo, a temperatura mais fria, mas não tem fogueira nem balão no céu… O que sobrou da Mata Atlântica agradece.

Em memória do Segundo Caderno O Globo

Em novembro de 1976, numa certa manhã na redação da revista TV Guia (Editora Abril) o editor Edgard Catoira me chamou para avisar que ia ter um “passaralho”, termo muito utilizado nas redações em referência a demissões em massa, e meu nome não constava da lista. Porém, buscava colocação para os que seriam demitidos e numa conversa com o Henrique Caban, editor de O Globo, soube que havia uma vaga para cobrir a área de TV no Segundo Caderno do jornal. Caban se interessou pelo meu currículo, já vinha me acompanhando e, caso eu aceitasse, a minha vaga iria para um colega que estava na mira do corte… Fui pra casa pensar. Nunca tinha trabalhado em jornal, toda a experiência era em revistas e tv, o salário não mudava muito, mas soava como um desafio sedutor.  No dia seguinte fui conversar com o Caban e assim começou a minha vida nas Organizações Roberto Marinho onde mais do que jornalismo, aprendi a me colocar como mulher e profissional. Não que eu não soubesse me portar, mas diante daquela redação repleta de intelectuais, o que eu escrevia era considerado subproduto…. Além disso, constava no meu currículo ter sido secretária do apresentador de TV Flávio Cavalcanti, considerado super de direita, ter escrito e dirigido revistas de fotonovelas… Popular é pouco…

Era um tempo em que ainda havia o discurso “passei pela área de serviço e a minha empregada estava assistindo o Chacrinha” ou a referência à qualquer outro programa popular, onde também se incluíam as novelas. Sim, eu sabia sobre os bastidores deste mundo ‘pouco qualificado’ e ainda namorava um diretor de novelas… Conviver com uma repórter assim era divertido para a “inteligentzia” que queria saber se a Sandra Bréa era caso de que diretor, se determinado ator era “bicha” – ninguém era gay naquele tempo- ,  se a cantora era “sapatão”, se fulano tinha um contrato com tantos cifrões, e  outras tantas curiosidades do submundo do subproduto das celebridades… Apesar de todo o ar político e culturalmente correto, a redação era um mafuá. Móveis velhos e empoeirados, janelas enormes que descortinavam para o Batalhão da PM, a trilha sonora das teclas nas máquinas de escrever, os cinzeiros cheios de bitucas de cigarro e o desfile de lendas do jornalismo que entrava silenciosamente para entregar seus artigos, alguns até escreviam em máquina no fundo da sala… Um calor infernal, o sol da tarde era inclemente, mas foi ali que eu comecei a forjar essa mulher que sou hoje… Foi no campo do que hoje seria o “bulling” que me fortaleci e passei a ter orgulho do meu caminho… Diferente dos meus amigos, eu não tinha cursado qualquer universidade. Sou do tempo que para ter registro de jornalista bastava apenas mostrar serviço, e assim me tornei uma.  As tendências ao brega que construí ouvindo o rádio da Rosalina na cozinha da infância, as raízes da Tijuca no grupo MAU, tudo formava a identidade do que eu estava me tornando.

Foi a partir de uma reportagem onde eu revelava o conteúdo das cartas que os fãs mandavam para os atores, que o seleto grupo de colegas passou a olhar o meu trabalho com mais atenção. Eu era um pouco mais do que uma “repórter de tv”. Consegui esta matéria graças à “santa” Guta, diretora de elenco da Globo e com poderes sobre as grandes estrelas globais, que me permitiu ler as cartas onde os fãs revelavam seus sonhos e intimidades em relação aos artistas. Como exemplo, um determinado ator recebeu uma caixinha que continha um vidro para que colocasse o seu esperma. Ela sonhava ter um filho e poderia ser até desta forma.  Foi a partir daí que meu caminho na redação ficou mais fácil e passei a me sentir pertencente ao time.

Tite de Lemos, Ivo Cardozo, Leonal Kaz e por último Fuad Atala acompanharam essa minha trajetória em 5 anos na redação do Segundo Caderno. Eles nunca souberam o quanto eu era feliz em compartilhar nas páginas do Segundo Caderno, entre matérias sobre sofisticadas montagens teatrais, operas, exposições de arte, concertos sinfônicos, autores premiados, cinema de arte, as matérias popularescas como as que fiz com Gretchen, Wando, Sidney Magal, Júlio Iglesias, entre muitas outras, além das estreias de todas as novelas…

Estas lembranças chegaram ao amanhecer quando soube da partida do querido Fuad Atala para redações celestiais. No ultimo dia 4 de abril quando reunimos uma parte dos Dinossauros de O Globo num jantar no Rio, chegamos a fazer um crachá para ele, mas com a saúde debilitada não pode brindar a amizade deste tempo tão feliz… Na foto, a alegria da nossa juventude e Fuad atrás da grande mesa com total maestria regendo todos nos… dezembro de 81, um pedaço da nossa equipe… ja não estão mais Sonia Biondo e Flavia Villas Boas… Presentes Leonel Kaz, Ana Maria Ramalho, Flavio Marinho, Terezinha Larcher, Eliane Levy de Souza e um pedacinho da Heloisa Daddario… Fomos muito felizes e continuamos a ser por ter tanta historia prá rever…

…e as crianças como vão ?

O tema Alzheimer voltou aos meus pensamentos com a morte da atriz e cantora Edyr de Castro. Ao ler a notícia tive a sensação de que não fazia muito tempo que ela fora diagnosticada e levada por amigos para o Retiro dos Artistas. Ah! como gosto do Retiro dos Artistas… No entanto quase 8 anos se passaram, o tempo corre… É mais ou menos este o período que acompanho o mesmo diagnostico em uma pessoa muito querida. Na verdade, creio que fui eu quem detectou algo estranho quando ela chegou para umas semanas de férias. No caminho do aeroporto à minha casa percebi que repetia os mesmos assuntos, creditei ao fato de estar animada com a viagem e muito para contar depois de um ano sem nos vermos. No entanto com o decorrer das semanas todos em casa foram notando a repetição das histórias e culminou com a Torta Alemã.  Ela sempre fez maravilhosas tortas para festas de família, principalmente a Alemã, e se prontificou a fazer uma para a ceia de réveillon. Comprei os ingredientes e ela avisou que faria a sua obra prima um dia antes para ficar mais saborosa. Faltando 4 dias para a festa ela acordou pronta para fazer a torta. Perguntei se não era para fazer na véspera, ela percebeu que tinha se confundido com as datas, afinal estava de férias e ”todo dia é domingo”. E este diálogo se repetiu nos dias seguintes até finalmente chegar o momento de fazer a sobremesa. Esta cena acendeu em mim uma luz vermelha, e quando voltou para casa enviei um longo email para a família contando os fatos, relatando a preocupação.

Alguns meses depois viria o diagnostico que ninguém queria ouvir, o próprio mal alemão, Alzheimer. Durante alguns anos permaneceu lucida, com alguns momentos de confusão mental. Voltou a me visitar outras vezes, tratei com cuidado, deixei o portão fechado com chave, temia que saísse pelas ruas da vila e não soubesse voltar… E pensar que ela caminhava pela estrada de terra, ia de uma ponta a outra da praia, passeava em Porto Seguro, e isso não fazia tanto tempo.  Foram dias difíceis ver como alguém que foi referência na minha história caminhava sem direção, pensamentos trocados, memórias confusas… Continuei percebendo as mudanças nos telefonemas algumas vezes por semana. Creio que ela não sabia que eu telefonava tantas vezes. Aos poucos a sua mente foi cada vez mais sendo tomada pelo “alemão” e as conversas eram confusas. Quando telefonei no aniversário ela disse que estava passeando em Itaipava. Como assim, se falávamos no telefone fixo?

O desgaste familiar foi ganhando espaço, todos exaustos, tristes, vencidos, enquanto o “alemão” se incorporava no dia a dia. Causava preocupação, temor por ter que ficar sozinha, contratou-se uma acompanhante, mas não era essa a solução. Chegou o momento que não se queria ver nem viver aquele drama. A escolha foi leva-la para uma casa de repouso onde teria tratamento, cuidados e atenção. Ninguém sofreria ao ouvie suas conversas truncadas, pois não tinham convivido com a mulher ousada, brilhante, perfeccionista, divertida, companheira, inteligente, irônica, uma grande companhia. E assim ela foi para uma casa que, por ironia do destino, está localizada em uma rua que homenageia um de seus antepassados. Tudo em família. Ontem pela primeira vez telefonei e depois que me identifiquei ela perguntou: “e as crianças como vão?”.  Não sei com quem pensou estar falando, certamente não era comigo. As crianças vão bem, nas minhas lembranças da infância… As crianças ainda somos nós…