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Sobre consciência negra

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Quando criança na casa dos meus pais jamais se falou sobre negros. A razão era simples: negros eram pessoas como nós e os chamávamos pelo nome… No início dos anos 50 minha família mudou de BH para São Paulo, papai alugou um sobradinho na rua das Acácias (hoje Pássaros e Flores) no Brooklin, um bairro distante sem pavimentação, muito barro no caminho e mamãe chorou quando viu aonde seria o nosso lar. Era uma área rural que começava a ser urbanizada. Ainda tinha algumas chácaras, rios onde tomava banho e o Ginásio Beatíssima Virgem Maria, a escola das freiras, aonde fui estudar. Foi lá que conheci Neide Fernandes, morava em uma casa simples numa rua atrás da minha. Quintal grande muito bem cuidado, flores e hortas, ali vivia com o pai policial militar que vestia um uniforme azul marinho sempre impecável, a mãe, a avó, dois irmãos e eu adorava brincar em sua casa. Neide não era branquelinha como eu. Era morena, o pai negro, a mãe e a avó mais claras, mas jamais percebi essa diferença por que lá em casa negro tinha nome e não cor de pele. A vida nos levou por caminhos diferentes, mas com a chegada das redes sociais nos reencontramos. Permanecemos amigas até há dois anos quando ela partiu depois de um curto tempo doente. Nem soube que estava internada, a noticia veio como uma bomba, também pela mesma rede social que nos reuniu. Neide sempre me surpreendia com pequenos mimos que enviava para a caixa postal. Pacotinhos com biscoitos de polvilho que derretiam na boca feitos por ela, pãezinhos de queijo, panos de prato e uma série de carinhos embalados. Um dia ela mandou o santinho da minha Primeira Comunhão. Chorei em rever a criança com o anjo da guarda ao lado. Teve o cuidado de manter intacta a lembrança por toda a vida. Quer amor e amizade maior ? Por isso, quando tanto se fala em 20 de novembro, sinto que a minha consciência negra é consciência do amor e carinho aos amigos. Homenagem à Neide Fernandes, aonde estiver…

Foto Claudia Schembri em 23 de novembro de 2011 no lançamento do livro Um Show em Jerusalém em São Paulo.

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Um pé lá, outro cá

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Um pé lá outro cá. 3 noites e 3 dias na grande capital e quanta novidade. Encontro com a família em festa de aniversário, com direito a parabéns, bolo e brigadeiro. Visito o centro com amigas, conheço o prédio histórico Farol Santander, passamos na exposição do Adoniran Barbosa, depois teatro de onde saí embasbacada. Não com o talento notório das atrizes de Eva Wilma e Suely Franco, mas pela memória perfeita. Com 84 e 78 anos respectivamente, um show com o texto correndo inteiro, só as duas em cena, do riso à emoção.

Volto para casa e no caminho para o aeroporto uma parada rápida para visitar uma amiga no hospital. Estou em um tempo que tem sempre algum amigo partindo ou se preparando para seguir viagem.  Por morar distante, na maioria das vezes as notícias chegam pelas redes sociais, sem chance de acompanhar um funeral…. Mesmo sendo um momento de dor, nos velórios se reencontra amigos, sabe-se como estão envelhecendo…

No Uber pelas ruas de São Paulo fui pensando o que me aguardava no apartamento 306. Há alguns anos a amiga com quem compartilhei tantos momentos, que testemunhei casamentos, crescimento dos filhos, separações, sucessos e fracassos, que vi dar a volta por cima tantas vezes, entrou num processo onde viver é o que menos importa. Acabou o tesão. Uma apatia tão grande e foi se deixando para o nada… Como companhia para a solidão o cigarro, algum comprimido tarja preta e as vezes uma taça de vinho. Esse conjunto não dá certo pra ninguém.

Bato delicadamente na porta, entro com cuidado e a encontro na cama com os cabelos presos num rabo de cavalo no alto da cabeça, o que lhe dá um ar jovial. O rosto está magro, são poucas as rugas, não faz o tipo velhinha…. Uma sonda no nariz, outra no braço, as mãos enroladas com ataduras e amarradas na cama. A enfermeira justifica de que ela ficou agitada, arrancou as sondas e precisou tolher os movimentos. Olho para trás e lembro nossas mãos soltas correndo pelo Jardim Botânico atrás da filha de uma amiga que se perdeu. Nossa juventude estava ali com os filhos pequenos, tantos desejos e sonhos… Até as perdas eram provisórias…

Mais de 40 anos de amizade e, mesmo que as vezes a distância fazia um vácuo, bastava um telefonema para resgatar o carinho e continuávamos qualquer assunto do ponto que havíamos deixado, sem importar o tempo. E encontro a amiga falando com dificuldade. Queria ouvir contar sobre este momento, onde foi que tudo degringolou, como chegou a este ponto. O tubo no nariz, a boca machucada com os lábios desidratados, a voz embargada, os efeitos dos medicamentos, deixaram a voz fraca, as vezes titubeante. Falei mais do que ouvi. Derramei um longo discurso com bons pensamentos, palavras de fé e positivismo. Rezei ao seu lado, agradeci ao nosso encontro nesta encarnação. Do pouco que consegui ouvir, com total lucidez, guardei a frase: “sei que quando bato com o pé no fundo do poço, tomo impulso e subo”. E quantas vezes ela fez isso… Despedi com um beijo na testa, saí pedindo a Deus que este fundo do poço chegue rápido, que ela tenha força para bater o pé e voltar breve para a vida…

De outras vidas…

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Aprendi em casa a fazer e conservar amigos. Meus pais não se contentaram com os 5 filhos. Ajudaram a criar outros três, receberam muitos amigos e parentes em longas temporadas, numa época que onde 7 comiam, 10 comiam também!  Ensinaram que fazer e cuidar de amigos é um exercício, e aprendi muito bem a lição. Quando alguém desaparece vou atrás e, se não encontro, é sinal que partiu para outra dimensão… As redes sociais têm sido generosas com reencontros e, entre tantos amigos, hoje me permito reverenciar uma que, como disse sua mãe, “esta é uma amizade que veio de outras vidas”. Ela é um exemplo de determinação e generosidade.

Aos 38 anos, empresária bem-sucedida, formada em duas faculdades, pós-graduada, completando um MBA, teve um AVC. Como sequela, ficou com palidez no nervo ótico, o olho onde através da câmera via o mundo e fotografava por puro deleite. Mas superar foi fácil. Aprendeu a fotografar com o olho esquerdo, desfez a sociedade na farmácia de homeopatia em BH, e atendendo a sugestão da neurologista mudou a vida antes que a vida mudasse ainda mais o seu caminho.

Quando estava iniciando um novo ciclo, veio trabalhar comigo na Secretaria de Cultura de Cabrália e alguns meses depois descobriu que estava com esclerose múltipla. Decidiu rejeitar os tratamentos convencionais que, segundo ela, eram muito invasivos e comprometiam o paciente e, por ser de uma família que se dedica à saúde e a educação, com suporte de alguns médicos estudiosos e pesquisadores, fez um mix de tratamento envolvendo a alopatia, antroposofia, homeopatia, acrescido de espiritualidade e muita fé. Alguns médicos ainda não entendem como conseguiu superar a doença auto imunine, mas o fato é que hoje ela é fotógrafa, atua como voluntária em projetos sociais e, quando o mar está tranquilo, desliza com seu stand up paddle pelas águas de Vila de Santo André… Salve Claudia Schembri em seu aniversário… Amiga, irmã, que todo dia me mostra que a fé move montanhas e é possível começar de novo !

Pensamentos na chuva

Foto : Cláudia Schembri

Foto : Cláudia Schembri

Chovia muito, quando na pequena rua de terra por onde o carro vagarosamente passava desviando dos buracos e das poças, avistei uma moça embrulhada numa capa caminhando, se protegendo como podia embaixo de um guarda-chuva… Fez um aceno para a amiga que dirigia o carro e me ignorou, fato corriqueiro nos últimos tempos… Aquele ignorar de alguém que passa por cima e faz que não vê, provocou compaixão…Eu estava protegida no conforto do carro e ela totalmente sozinha na chuva…

Seguimos o caminho para deixar uma amiga em casa e no retorno avisto a moça esperando o ônibus que sabe lá Deus a que horas passaria…  Situação desconfortante. Peço para a amiga que dirigia o carro fazer um retorno e ao nos aproximarmos da moça ofereci uma carona, mesmo sabendo que ela seguia para um local totalmente oposto ao nosso. Dez minutos não fariam diferença para ajudar alguém numa situação desagradável.

Não foi para garantir uma janelinha no céu que fiz a gentileza à quem nem me cumprimenta, mas por entender que a vida é muito curta para ter mágoa. Por alguns segundos me coloquei no lugar da moça e me senti péssima, imaginando não ter um amigo a quem pedir uma carona em um momento de emergência, pois vamos combinar que ninguém sai de casa para passear pisando na lama num dia chuvoso…

A verdade é que o tema amigo estava comigo desde o começo do dia e tem sido uma constante em meus pensamentos… Talvez a maturidade esteja me permitindo entender o outro. Nesta manhã de chuva eu voltava de um encontro com pessoas, que apesar de serem ímpares, têm um pensamento par em relação ao meio ambiente. Não estão preocupadas com o que são, mas sim como que juntas podem fazer alguma coisa bacana no planeta. Uma proposta de somar sem o formato de empregados seguindo o patrão, sem egos à frente das decisões, mas construindo juntos em prol de um bem maior… Não é fácil este movimento, assim como ninguém disse que era fácil viver… E mais difícil do que viver é conviver, perceber o outro e permitir que ele seja o que quiser, sem julgamento, com um olhar complacente de quem entende que é tudo muito curto, rápido e efêmero…

E como teve muita chuva e aprendizados, acabei o dia recebendo um maravilhoso presente… Fui citada com carinho e amor pelos meus queridos Esther Rocha e Ronnie Von no programa “Todo Seu”… Até fotos aqui de casa ela mostrou ! Quer coisa melhor na vida do que ter amigos e ver que tem sempre sol depois da chuva ?